quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

canto

caminho por uma rua deserta e para minha surpresa encontro um homem.
não há absolutamente nada ao nosso redor. nem neblina, nem escuridão.
esse homem me acena e chego mais perto. prazer, me chamo eric satie.
eu conheço você, gosto muito de suas músicas. obrigado. quero te mostrar
a minha mais nova composição. então ele abriu os braços e um piano de cauda
apareceu na sua frente, e ele começou a tocar uma melodia distante. a melodia
de fato estava distante, como que se não estivesse saindo desse piano, e sim de
algum lugar bem distante. tanto que havia uma dessincronia entre o gesto dele
e o som. foi quando a melodia me levou, entrando debaixo dos meus pés, para
longe dali. era um campo florido, mas as flores eram cabeças de pessoas com
kokares indígenas de penas coloridas. elas, como girassóis, sorriam em direção
aos raios solares. quando cheguei no lugar, carregado pela melodia, as cabeças
começaram a cantá-la e fiquei preso, sem conseguir me mexer. dessa vez, a melodia
me circundava e girava sobre meu corpo, criando um campo de força que, como
uma corda invisível, me mumificava naquela metáfora. fui enterrado junto das cabeças.
aos poucos sinto os pequenos insetos daquela terra roxa se alimentando de meu
corpo melódico. vou me dissolvendo em notas musicais que penetram a lama.
o que sobra é minha cabeça, agora ornada em flor. canto

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

papel encontrado no chão de uma rua imaginária

não se pode entrar no mesmo rio duas vezes
não se pode entrar no mesmo rio de janeiro
não se poda as entranhas do riso
não se pode entrar no mesmo siso
não se pode
si
perder
de si

então escrevo essa carta
direcionada para o passado
enquanto a memória do futuro
nos lembra do que estamos vivendo agora

nada permanece
mas como seria
poder lembrar de tudo
se os poderes nos fazem amnésia
e a cada dia somos mais esquecidos

escrevo essa carta para me lembrar
de que alguém escreveu essa carta

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

lá fora o sol está tão forte que até acho que é o sol
(e não o que eu acho que é o sol)

as árvores com suas folhas de verdes de diferentes cores
parecem explodir de tanto verde

pingam gotas do ar-condicionado do vizinho de cima
na beira da minha janela
(ou seria da beira da minha visão?)

o tempo está abafado
uma estufa de cidade

a cidade quase não respira
está de boca aberta na paisagem

seria interessante notar que essas ilusões
me enclausuram no calor de segunda-feira
mesmo que o tempo não exista

talvez o calor seja essa mania de sentir que o eu existe
e seja toda a energia desperdiçada nessa tarefa árdua
de existir o que não-existe

percorro livros
percorro ruas
as pessoas caminham segurando pastas, mochilas e pesadelos.
carregam correntes entre eles mesmos
pesadas
imperceptíveis

e os laços mais sutis se perdem
na confusão dos sinais

além do bem e do mal
e além da poesia
poderemos esperar um pouco mais esse ódio?

espremer os cravos da nossa face mental
e enxergar as impurezas do branco?

na sala alguém vê videoshow
um passarinho canta lá fora
vejo mosquitos, ouço crianças aqui embaixo
sinto calor

domingo, 5 de dezembro de 2010

Sonho Lúcido

acordar para as possibilidades do sonho.
dar um passo além no vazio.
perder o medo de não-ser.
entregar-se ao nada.

acordar no sonho.
perceber o mundo a sua volta
que está dentro.
entrar para dentro desse espaço que é você.
que você é.
que você não existe.

acordar para as páginas que caem dos olhos,
descer e subir escadas
elevadores

rostos antigos tão familiares agora.
lugares conhecidos pelo desconhecido.
estar fora do corpo
que não é você.

estar no universo que é você.
estar consciente no sonho.
questionar a realidade e aumentar a lucidez.

caminhar nos abismos.
enfrentar os monstros.
cortar atalhos.
encontrar pedras no caminho.
perceber.

ser sem pressa.