quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

minha vó dorme ouvindo rádio.
a cidade dorme ouvindo a cidade.
eu durmo ouvindo minha respiração.
contando até vinte e um.
e depois voltando.
contando até vinte e um.
e depois voltando.

às vezes parece que a gente não é só
de carne e osso.

e é verdade.

Rui de Paquetá

Rui era um senhor de 56 anos, barriga de chope, leve barba. Morava em Paquetá. Uma casa modesta, quadro de Jesus, tv 29 polegadas. Coisas compradas no Ponto Frio do centro. Gostava de fumar cigarro, sentado na sua poltrona. Tinha um canário, Sinatra. Usava sandálias de couro. Gostava de pescar com os amigos Gomes e Ademar. Era viúvo.

Um dia, fumando e olhando a janela, viu dona Lorena, a nova vizinha. Ela estava regando as mudas de violeta. Os dois se olharam. Lorena fechou a cortina.

Assistindo Faustão, Rui foi pegar uma cerveja na geladeira, escorregou e caiu. Com o traseiro doendo, observou um objeto brilhante envolto de poeira embaixo da geladeira.
depois de semanas tentando retomar a lucidez dentro dos sonhos,
ou já entrar lúcido neles

consegui acordar já sonhando e estabelecer mais nitidez.

depois de algumas imagens borradas e entrada no vazio.

deparo-me com um senhor, meio sorridente.

ele diz - aprende a viver.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

bola de gude

no ônibus para niterói escuto lô borges.
o cinema da janela existe.
não quero ir de barca, porque quero chegar.
eu ia lhe chamar, enquanto a barca não corria.
mas o coração pulou no vão central, junto com a suspensão.
alguém ronca alto, e baba.
vejo uma mulher grávida, mas não quero sair do lugar.
hoje eu to egoísta praca.
pernas brancas, pretas, amarelas.
meus deus, pra que tanta distância.
eu só queria ser e ter todas as pernas.
e caminhar todas as distâncias.
porque me chamaste sol
se sabias que o sabiá sabia assobiar?

mundo mundo pequeno mundo
cabe dentro da bola de gude do olhar

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

dizer o óbvio
ser um ser humano
sentir, doer, gostar
rir
as paisagens não mudarão enquanto não mudar o olhar sobre elas
isso já foi dito

envergo o olhar
num contorcionismo verbal
lá longe dá pra ver
minha alma dançando
num abismo de oceanos
a porta bate
quem somos?

deixo pegadas na porta principal do seu silêncio retorcido diante das figuras magnificas que inundaram a serpente dos abismos dentro de mim eu grito o seu nome pelas janelas da memoria onde cada um recebe o seu chamado e a sua condução de sonhos

é de pedra a nossa forma animal
retorcida
desabando nas paredes da memória

o corpo como uma cítara se afina

estica

a alma

seria feito de plástico
jogado à deriva
nos sete oceanos
eu falava a verdade
quando nada havia de ser tido

justo agora que sonhei que estava acordado
insisto no insight do precipício

se tudo voltasse ao início

seria o fim

sábado, 1 de outubro de 2011

corvos e girassóis


espetáculo de dança - Márcio Cunha Dança Contemporânea

ao terminar o espetáculo
uma senhora, com uma expressão confusa no rosto
me perguntou:
- o que você entendeu?

um pouco embaraçado com a situação
respondi, em tom leve:
- então, senhora, acho que é mais para
sentir.

e a senhora:
- ah, é né, é dança contemporânea...

eu poderia ter dito pra ela uma frase que o manoel de barros
sempre fala:
"poesia não é para compreender, é para incorporar."

até porque,
se a razão fosse capaz de nos fazer experimentar
o mesmo que os mistérios do sentimento, das sensações e da imaginação,

pra que a arte?

livremente inspirado na vida e obra de van gogh
esse espetáculo íntimo do dançarino e coreógrafo márcio cunha
acompanhado pela presença da também dançarina renata reinheimer
percorre pinceladas fortes
a força e beleza do gesto
o desespero a loucura a solidão
o sublime ato de criar
e destruir-se enquanto

talvez enxergamos melhor
quando não temos visão
e uma obra de arte
faz sumir o artista
no seu transe
para que o espectador
veja, sinta, ouça, toque, cure-se (como em tommy - the who)

se kurosawa faz a gente entrar em van gogh

(clique aqui para ver um trecho do filme "Sonhos")

corvos e girassóis pode fazer a gente entrar
em nosso van gogh

o movimento dos dançarinos parece querer se fixar no tempo
enquanto o espaço some

o enquanto dos dançarinos parece querer se fixar no espaço
movimento e tempo somem

o tempo dos dançarinos parece querer se movimentar no enquanto
os dançarinos somem

e é na repetição que o transe irrompe

"repetir, repetir, até ficar diferente. repetir é um dom do estilo."
manoel de barros

a começar pelo começo:
enquanto mexem, remexem, giram, tiram do lugar, colocam de volta, procuram O lugar para organizar algumas cadeiras no espaço - peter brook diria que eles estavam criando o espaço vazio, tão vital para criar-se um espetáculo propício para a imaginação e interação com o público
-
os dançarinos convidam alguns espectadores para assistirem a apresentação
dentro do palco, em algumas cadeiras de palha, cadeiras de van gogh.

já esse movimento nos diz sobre a concepção da obra
vamos entrar
e, cada cadeira e cada espectador, com sua posição na cena, e seu ângulo e ponto de vista diferente, joga a nossa imaginação para visualizar e sentir de outros pontos também

como será que ele ali está vendo? e aquela moça ali? e esse rapaz sentado na minha frente?

o que cada um vê?

fernando pessoa deveria chamar-se fernando pessoas, como disse o ferreira gullar,
já que o homem precisava ser sempre outros (todos precisamos)

"não ser, é outro ser." manoel de barros

então somos convidados a sermos outros, para assim nos vermos melhor

e nesse jogo de pontos-de-vista, nosso olhar vai sendo direcionado, pela força gigantesca de minúsculos gestos, ou até mesmo de sensações (gestos internos) ao mesmo tempo que é jogada para ver a explosão do corpo, em gestos largos

- será que a gente consegue atingir o sublime pelas coisas mais banais? (os orientais diriam que sim, e todo artista universal também)

e o repertório de movimento não chega a ser extenso, virtuoso.
com poucos elementos, assim como poucas cores em van gogh, mas cores primárias, complementares (homem e mulher, autor e obra, claro e escuro, corvos e girassóis),
rima de corpos, criação de figuras imaginárias no espaço, linhas e curvas, ritmo,
e principalmente,
gra
vi
da
de

atingimos o EU
caímos em si
ao sermos outros
em corvos e girassóis

se uma obra não mostrar o homem para o homem
não sei pra que serve

ou pra que não serve.

a poesia é um inutensílio poderoso, de tão suave.

viva marcio cunha, renata reinheimer, e toda a equipe desse belo espetáculo.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

vi o sol agonizando atrás da montanha
e suas últimas palavras
nem consegui escutar

mas permanecia um poema

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

injeção

teve uma vez
quando eu era pequeno
que tive uma crise de asma
e tive que tomar
injeção
nas mãos

hoje, na médica
tossindo e respirando mal
ela perguntou
- você toma injeção?
eu disse que não gosto não
e contei a estória
da injeção
nas mãos

ele me receitou um xarope

lembrei do bandeira
do lance do pneumotórax:

- o que resta é ouvir um Led Zepellin III.

domingo, 25 de setembro de 2011

o mundo está em guerra
enquanto isso
eu faço poesia

estou em guerra
com a idéia de estar
de ser
estou em guerra com
a idéia
com a guerra
com o mundo

estou em guerra com
o enquanto

domingo, 18 de setembro de 2011

frango de padaria

quando eu era pequeno
na padaria da esquina da minha rua
tinha uma máquina de frango
aquela que fica girando
e quando a gente pedia
um frango
pro cara da padaria
ele vinha
abria
e cortava
com uma tesoura

eu lembro que eu queria ser esse cara
para poder cortar os frangos
com tesoura

domingo, 14 de agosto de 2011

falsa valsa

não sei se Paris é falsa
mas o que sinto é verdadeiro

desço de velib
na madrugada veloz

uma garrafa de vinho
canta na madrugada amarela

não sei se estou na Grécia
na Renascença
na Revolução

alguém no escuro fuma um charuto
cubano

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

eu queria escrever alguma coisa
que envolvesse as pessoas
como música.

é melhor eu fazer uma música.

minha lua

ela desrespeitava as leis da gravidade. com o seu cabelo fazia o dia acordar mais cedo. segurava a manhã com os olhos fechados. nos seios, espalhava a primavera e fartura. tinha um par de luas quando olhava o céu. nos pés, poeira das estrelas. tinha os sonhos de menina. o travesseiro dormia abraçado nela. ela não dormia. acordava o dia mais cedo.

no horizonte céu sol e lua

civilização

passa tempo
passa o carro
passa tempo
passa vento
eu vejo a cidade passando
passeando no rodopio
dessa bicicleta
dessa fantasia
passam reis e estátuas
passam sociopatas
os cavalos das carroagens
e os cagos dos cavalos
de mil anos atrás
eu não quero saber
da história com h maiúsculo
eu só preciso continuar
passando o tempo
passando a marcha
passando pelo rio
rápido
como
Sena

o rio passa por mim
a bicicleta me pilota
a torre me escala
os reis me decoram nos livros
estou vivo no passado
com caixão e tudo
meu caixão é feito de asfalto

(não estou em paris e nem estou ouvindo caetano)

eu quero sorrir na calçada
para uma prostituta
que usa meia-calça rasgada

parece que a cidade está dormindo acordada
numa festa de formatura
há milênios atrás
passa um mendigo com as calças arregaçadas
a garrafa de vinho
tinto
a garrafa bebe o bêbado
corre! corre! corre!
eu pego velocidade
na decida do rio
perto, quase junto
o vento tenta me alcançar
consegue! eu vejo as luzes da minha imaginação
elas não me alcançam
pode ser uma chuva que vem ai
pode ser
foda-se
a lua está em cima
a lua está em mim
foda-se
eu corro mais rápido do que essa cidade gira
numa valsa sangrenta de cem anos
uma foto tira um chinês
um crepe faz um africano
com a própria massa
da civilização
C I V I L I Z A Ç Ã O !!!!!!

eu quero vender pastel na índia
comprar escravos
e fazer palácios de areia
e pisar em cima
e mijar em cima
você ouviu a civilização chamando
na estação de metro?
você ouviu o som
que as flores minuciosamente colocadas
entre uma linha e outra
você ouviu?

passa o tempo
rodopiando na minha correia de metal
a roda gira na direção da rotação da translação da terra sobre o céu
a terra é o centro do meu universo
e ela pedala na minha cabeça
carregando os sons
e o sol
nas mãos

posso encontrar poeira das estrelas
no seu sapato de duzentos anos
cheio de promessas de danças tradicionais
e de poemas românticos
posso encontrar escondido num armário de madeira
que a tataravó de algum rei esqueceu de abrir

eu pedalo
em cima dos telhados
atropelo um carrasco que tirou minha cabeça
na revolução passada
ele tem um sorriso de quem comeu um kebab
ontem de manhã

os árabes vão fazer um cruzada ao contrário

o tempo não passa
na minha bicleta
eu posso ver o meu futuro
sentado na calçada
fumando os jornais
não sei das notícias do brasil
nem quero saber

eu quero saber de civilização

anotações de viagem 1

o exílio
dá para entender
é aquela saudade de casa
ou do que inventamos que era
nossa casa.

escrever me traz para casa
e me afasta dela
escrever é como viajar
para bem longe
carregando sua casa
dentro

acho que desacostumei
a escrever com caneta
digo, escrever no papel
acho que já acostumei
e acho mais prático
e rápido
escrever no computador

a vantagem do papel é escrever em qualquer lugar

a vantagem do computador é não escrever em qualquer lugar

a vantagem do lugar é não escrever em qualquer

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quando eu fizer 26 anos
vou me dedicar à pintura
como Van Gogh.

tomara que eu não corte minha orelha.
gosto dela.

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dentro de um pub inglês
calor
humano
- a bebida é fundamental para o inglês
um ser teatral por natureza
deve ser chato o frio
então se bebe
para tentar
lembrar o jeito que se é

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edimburr

os pássaros gargalham.

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o cinema é só uma continuação natural do trem

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no vondelpark (não sei escrever)

o sonho dos pássaros
é sonhar acordado
um cão late no fundo
os cães aqui só obedecem
ao dono
as moças falam
é também
mais elegante que
francês, pode parecer estranho
mas é

escuto o segredo
dos pássaros
as moças portuguesas
com certezas
sobre o mundo
ficam voando no verde

é saudável
lulu se perdeu da dona

(vamos chamar o vento)

o sol resiste
as pedras
estão
em cima
do rio
o rio está debaixo
da pedra

quando eu inverto
(manoelizo)

a tarde permanece
na aranha

acho que entendi

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amsterdã
começou
com 2 caras
e um cão
num barco
na chuva.

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escrever é algo que só se pode
fazer sozinho
mas a poesia é contato
com o mundo
de fora e de dentro

perder o dente numa briga de rua
jogar no bicho
escrever o nome de Deus em vão

escrever é algo que só se pode
fazer
e se eu fechar os olhos,
Paris ainda é um carrossel
que gira
em torno de Deus
em torno do poeta
o cara dorme no trem
ouvindo no fone
heavy metal
uma mulher está vestida de
tigre
um pai de família
tem um coração em chamas
tatuado na perna
aqui as coisas são longe
tudo é tão longe
a gente nem andou na rua direito
tem sempre, no mínimo,
umas quatro línguas sendo
faladas ao mesmo tempo
não sei por que
pensei nos EUA
no velho oeste

domingo, 7 de agosto de 2011

tudo

ouço Saraband - tema do Barry Lyndon
http://www.youtube.com/watch?v=Cr_fsGEW2-A

e consigo ver tudo
de novo
e consigo ficar cego
de tanto ver
e consigo ficar livre
de tanta prisão
e consigo ficar leve
de tanto peso
e consigo ficar firme
de tanto vento
e consigo ficar sóbrio
de tanto sonho
e consigo ficar jovem
de tanto velho
e consigo ficar sombra
de tanto sol
e consigo ficar apaixonado
de tanto ódio
e consigo ficar breve
de tanta pausa
e consigo ficar febril
de tanto frio
e consigo alcançar o céu
de tanta terra
e consigo encostar nas estrelas
de tanta distância

e consigo ficar cego
de tanto ver

domingo, 10 de julho de 2011

embriagado

foge a palavra para descrever
e fica só o silêncio
do que não foi dito
e nunca será

forma
desenho
rabisco

de um sonho quase sonhado
de uma quase noite
entre mundos

restos de uma chaminé
pedaços de uma estrada
passeando nas nuvens
chuvendo nadas
lavouras arcaicas
de muito tempo
movimento de estar parado
no meio de uma estrada
no meio do nada

sinto como se a noite me engolisse
para dentro do seu dia
meus olhos fecham-se
dentro da noite neles
o estômago revira
almoços de ontem
o sol aquece o amanhã
o sol brinca com o amanhã
atrás das montanhas de meu país

parece que a cidade está dormindo
o ronco dos motores já parou
fica uma saudade de quando eu serei menino
fica uma saudade de você

dormindo em mim

domingo, 26 de junho de 2011

Onde? - prosa (resposta ao poema)

----------(resposta ao poema - http://limitedapalavra.blogspot.com/2009/02/onde.html )


----------No tempo em que estagiei na Ancine, apenas seis meses, o que mais me intrigava era a poesia. Foi pouco tempo mas tempo suficiente para muitas coisas. O prédio da agência está localizado em frente ao Palácio Gustavo Capanema, o marco modernista por onde sempre gostei de pegar uma brisa. Drummond trabalhou lá. O Ministério da Educação nos anos Vargas era baseado ali. Gostava de ficar imaginando como seria voltar ao passado e encontrar pelas esquinas do Rio, pelos bares do centro, os poetas que tanto admiro - Drummond, Vinícius, Murilo Mendes, Manoel de Barros (sim, o "poeta do pantanal" morou muitos anos no Rio), Gullar, Bandeira... - assim como o Woody encontrou em filme os seus ídolos no "Midnight in Paris".
----------Do meu escritório burocrático, do meu cubículo, a realidade só poderia fazer sentido não fazendo nenhum sentido, ou seja, através da poesia. Foi o período mais fértil poéticamente falando. Ou período mais prolixo (onde eu produzi e incentivei a produção de mais lixo). Escrevi em torno de 40 poesias por mês. A razão ou desrazão é simples. O trabalho era organizar planilhas no Excel, um típico trabalho de estagiário. Não havia nenhum desafio, nenhuma necessidade específica, nenhum requerimento intelectual. Talvez ensinando chipanzés a mexer no Excel, se sairiam melhor que os humanos - apenas, é claro, ofertando uma banana para cada planilha consolidada. Minh`alma de poeta não poderia se contentar com esse tipo de batente. Até porque a poesia precisa ser inútil. (Se bem que, pensando agora, todo burocrata do serviço público tem grandes chances de se tornar poeta - já que seu trabalho, em grande parte, se resume a buscar formas de não-trabalho, formas de ser inútil. Vai ver uma das razões de grandes nomes da literatura nacional pertecerem a esse tipo de emprego - Drummond, Vinícius, Guimarães Rosa, João Cabral... a lista continua).
----------Até que um dia, por incrível que pareça, realmente encontrei Drummond andando pelas ruas da Cinelândia. De início achei que apenas um sósia. Mas não. Era ele mesmo. O poeta por excelência. Aquele que a gente estuda no ensino fundamental e médio. O mundo mundo vasto mundo. O e agora josé. Drummond andava como quem procurava algo. Sem saber o que perguntar, como abordá-lo, apenas cutuquei seu ombro esquerdo, por sinal ossudo como conhecia em fotografias. Ele virou atordoado. Era ele mesmo. Perguntei se ele gostaria de tomar um chopp e conversar sobre poesia. Para minha surpresa, não só aceitou como mostrou-se animado para a conversa. Ou para o chopp. Eu disse que pagaria.
----------Foi então que todos os dias, eu encontrava algum poeta. Andando pelas ruas da Cinelândia, como o Drummond. E em cada encontro conversava sobre poesia, sobre o processo de cada poema, sobre o que inspira, o que é importante para o poeta... Eram conversas deliciosas. Aprendi muito nesse tempo. Ir para o trabalho já não era tão maçante, porque eu sabia que no fim do expediente, encontraria um poeta, tomaria um chopp com ele, e dividiria estórias, poemas, causos, coisa que sempre sonhei.
----------Vinícius era um grande parceiro. Fazia questão de pagar os chopps. Que eu tomava, já ele admirava um bom scotch. Fomos ao puteiro juntos. Nunca me esquecerei. Uma mulata, até bem bonita, sentou-se no colo do poeta. Cantou uma canção, supondo ser de Vinícius. Ele riu, e fingiu que era mesmo dele. Um verdadeiro poeta. Na saída, ele pegou na minha mão e disse: o melhor remédio para a dor é o whisky. o segundo melhor é uma mulher. o problema é misturar os dois. a dor fica maior.
----------Já com o Manoel foi diferente. A gente costumava pregar peças nos outros poetas. Coisa de traquinagem mesmo, criancice. Ele era um fanfarrão, mas muito tímido. Numa vez pusemos tachinhas na cadeira do João Cabral. Dizem que depois ele escreveu sobre o lance da palavra pedra. O Manoel gostava mesmo de brincar. Mas tímido que era, precisava de alguém como eu para concretizar o que imaginava, as artemanhas. Ficava olhando os cantos sujos da parede, atrás de lixos e conversa com mendigos e bêbados da rua. Gostava muito do Sêo Tonho - um bêbado que morava ali perto do Capanema. Costumava pagar uma pinga para ele, depois do expediente. Uma vez o poeta me disse: o Tonho é fazedor de mentiras. gosta de inventar coisas com o lixo para poder ser poeta. o Tonho é capaz de criar um automóvel a partir de uma lata. Ele até já se jogou na frente do bonde só para teatro. Ser artista é esse ato suicida.
----------Foram tardes e noites incríveis. Grande parte do que escrevo hoje é só de memória daquele tempo. Outro dia fui na Biblioteca Euclides da Cunha (BEC - que fica no Capanema) e achei um pequeno bilhete dentro de um livro bem velho do Drummond:
- "Pagar o chopp que devo para o Taiyo."
----------O poeta é um ser de princípios, po.

outros pontos

Escondo-me por trás da escrita, para poder aparecer mais real. A escrita começa antes, no encontro com a pessoa que vai escrever. É uma coisa meio transe - não é nunca você. É o tal do Eu-lírico. Achar essa entidade e perder a identidade, um caminho que garante mais força ao texto. Versos livres são artifícios de preguiçosos. Os poetas deveriam antes dominar o soneto, e outras formas clássicas. A aventura do verso livre exige uma disciplina interna. Se não vira fotografia digital - quando antes o filme tinha 12 ou 24 fotos, hoje é um desperdício de imagens. Não há mais escolha, enquadramento, cuidado. Voltamos aos primórdios, o que é bom. Em ciclos parece que caminhamos até passar pelos mesmos pontos, mas com uma visão de mundo diferente. Enxergando outras coisas. Enjoando de outras. Pois estou num novo ponto do ciclo. Está na hora de deixar a preguiça e entrar mesmo na prosa. Sempre tive medo da prosa. Mudar de parágrafo é um ato de medrosos. É coisa de quem não tem coragem de seguir na mesma linha. De criar uma linha extensa. Para isso contei com a sugestão da poeta Flavia Doria. Começarei adaptando para prosa alguns poemas meus. Transformando. E para facilitar, usarei a memória. Falarei de mim, coisas que vivi. É mais fácil partir daí, e depois criar em cima. Portanto, espero trazer mais desafios e descobertas na escrita, tanto para mim quanto para vocês (se é que alguém acompanha esse blog). Que escrever se torne novamente o meu vício, sem ser em verso. Ou vício-verso. Será que conseguirei limar essas gorduras poéticas numa prosa magra como eu? Será um exercício. Alongamento do texto e emagrecimento das firulas. Quero agora contar estórias e aprender a escrever prosa. Simbora.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Pessoas - ou argumento para a descoberta da pessoa que não me é por ser-me

"contam em relatos da tradição tibetana
o modo como se dá a sucessão do Dalai-Lama:
uma comitiva de monges
carregando alguns objetos pessoais
do antigo sacerdote
juntamente com outros objetos semelhantes porém
sem terem pertencido ao Dalai,
óculos, túnica, lápis...
3 de cada.
os monges seguem uma carta-testamento
indicando através de uma charada
o local possível da reencarnação do mestre,
onde lá estará uma criança
um menino
que escolherá corretamente os seus antigos objetos
espalhados com os outros
de nenhum valor.
ele saberá, por instinto, por intuição.
ele reconhecerá."

- escritos achados numa ostra (1888)

foi assim, numa livraria do rio de janeiro
que fui-me saber o sábio que não era
ao achar que sabia de tudo
sendo eu apenas um garoto de onze anos
com nenhuma vivência mais emocionante
e por isso mesmo, com toda a experiência do mundo
imaginada.

foi uma imagem?
foi alguma palavra?
lembro apenas de pegar o livreto com as mãos
e reconhecer o objeto
como sendo meu
enquanto eu não me era.

"Fernando Pessoa - Poesias" - um pocket book.
na capa, uma caricatura, de um homem de óculos
com o rosto magro como o meu
com o rosto que seria meu daqui há 30 anos
e que ainda já deixou de será
pois fiz operação: não sou mais míope nos olhos
(sou n`alma e na poesia - enxergar só de perto)

reconheci as palavras como se fossem minhas
escritas naquele futuro que já passou.
porque diabos um moleque de onze anos se interessaria por um texto daquele?
foi o que? as frases? a falta de sentido?
algo sobre o mar? sobre o fingir da poesia?

a poesia em mim começou tentando fazer falar um fernando pessoa
e talvez tenha funcionado justamente por eu ainda não me ser
(como continuo não me sendo)
(não quer dizer que minha poesia funcione - a não ser para não-funcionar, que é sua função básica)
(não quer dizer também que a poesia é minha)

desconhecer-me passou a ser um hobbie que ocupava as aulas de matemática.
ainda hoje reconheço fórmulas de báscara pelo poema que estava escrevendo
enquanto o professor nos fazia decorá-las.

já é madrugada, meus olhos cansados não querem fechar o poema
o poema está nos meus olhos,
mas queria que estivesse nos ouvidos
ele segura com força minha pálpebra
e grita seu esforço de dizer alguma coisa não dizendo nada
gritando silêncios com uma força descomunal

já é quase outro dia
e ainda pergunto
por que dentre todos os livros, revistas, quadrinhos,
por que diabos fui pedir para minha mãe comprar
"Fernando Pessoa - Poesias"?
por que me fizeste conhecer esse tipo de incapacidade
crônica de expressar o tempo?
se sabias que não era Tu, sendo eu mesmo nem eu?
se sabias que eu seria Tu?

antes, na adolescência, era mais fácil simplesmente sentir
o abandono das coisas, pessoas, a solidão de perceber as mudanças
a solidão de perceber.
antes era mais fácil chorar páginas dos óculos.
antes eu dizia ser eu mesmo Álvaro de Campos, Caeiro, quando quisesse.
era só ser.

hoje é preciso não-ser.
o que muda um pouco a gravidade da situação.
é preciso inventar um abismo dentro de mim
no lugar do abismo que já não existe
e acreditar nele
e ter medo ao se jogar
e se jogar
e não cair
e não cair.

seriam essas vozes que me vem perto do ouvido
alguma sombra esquecida
algum segredo
que não cheguei a contar?

sinto sua presença agora
sinto um arrepio na costela
que percorre a coluna, a espinha e me deixa o couro cabeludo elétrico.

é você?
são vocês?
sou eu?

somos ninguém?

pego o metro lendo sobre você
e acabo lendo poemas meus e a minha estória de vida.
foi esse o teu segredo?
ser todos
sendo ninguém?
é essa a coisa da poesia?
fazer ser o que não é
não-sendo o que se é?

hoje, ontem, sei lá
seria apenas uma data
mas na tua astrologia
de extrema importância
é o início de um poema
que você fez questão de destruir - sua vida -
para ver o nada que na realidade era
como as coisas jogadas fora
que o Manoel separa com as palavras.

ontem admiti que você tinha mais importância para mim
do que o Manoel. e nem foi duro ou doloroso dizer isso.
eu sou mais importante para mim do que Manoel.
sendo eu você e você nada. sou-me nada, mas não admito isso.
não gosto dessa estória de niilismo, de botar para baixo, melancolia negativa.
acredito numa melancolia positiva.
o problema é esse.
sinto que já sou outro.
não sou mais o Pessoa que era. ainda bem.
seria mais fácil simplesmente desacreditar de tudo
e cometer o suicídio, alegando a incapacidade de viver e a falta de sentido das coisas.
seria pós-moderno, ou sei lá!
mas eu não sou pós-moderno - não entendo nem os românticos, não entendo nem os clássicos,
não entendo as pinturas rupestres!

se tudo o que a civilização construiu desmoronasse agora
eu gostaria de estar lá
chutando os escombros
cantando e dançando
descobrindo de novo
como fazer o fogo.

atribuindo mitos e fazendo sexo.

seria mais fácil colocar para baixo
mas eu sou outros, de outros tempos, de nenhum tempo.
tenho esperança na poesia.
não preciso do álcool, do absynto, da cocaína, do ópio...
não precisamos mais disso...

o Manoel de Barros é a maconha da minha geração.
ouviu? (falo comigo no espelho, comigo, Fernando Pessoa, me escutas?)

já não sinto o frio na barriga como morte.
sinto como vida.
sinto, logo existo.
amo, logo existo.
poesio, logo...

não há lógica na poesia
não há espaço cartesiano, capacidade de definir algo,
poesia não é tradução de sentimento
é impossível traduzir um sentimento em palavras

é invenção

poesio, invento um existir...

para que?
"há metafísica bastante em não pensar em nada"?

preciso tocar o céu com a mão suja de poemas.
só assim poderei enxergar o mundo limpo.
reconheço nessas palavras o ser que escrevi.

já não consigo ouvir o porvir o orvalho
já não consigo escrever
mais
nada

quinta-feira, 26 de maio de 2011

estranho

estranho essa coisa que a poesia tem.

você primeiro não vê.
então tenta relatar o que você não está vendo.

e nem consegue!

a poesia talvez seja o lugar
onde o êxito vem
em não alcançá-lo.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

ainda tenho coisas para dizer

percorro as paredes da memória como quem tateia cego uma parede de giletes
se cortar é apenas um detalhe, vira pintura imaginária dentro da minha caverna
sou o que fiz até agora e o que poderei fazer um dia
mas sou mesmo apenas o que sou agora
isso é pertubador

tudo o que fiz na vida
já não existe mais
a não ser que eu invente
a sua existência
lembrando
lembrar seria viver agora
uma invenção do que aconteceu?

assim como costumo lembrar
de tudo o que poderei fazer
das mil e uma faces que terei
de todas as minhas vidas futuras

se a vida bastasse
a poesia faria sentido
e não faria

delírio

convite da chuva

voltando do trabalho um homem descobre seu rosto numa poça da chuva no chão

a noite convida a entrada para o mundo das imagens
e o homem pisa em seu rosto como se negasse a chuva e o frio
algumas pipocas molhadas alimentam pombos
ou alguns pombos alimentam as poças?
seria o centro do rio um rio sem centro?
perdido em pensamentos sombrios, o homem esbarra num cão
não
era um homem
no chão
enrolado com um plástico preto
em posição fetal
emitindo um latido molhado pela chuva

um cigarro fuma um magro de olhos esbugalhados
e as cinzas do prédio se confudem com a fumaça que os carros
respiram

a noite convida a entrada daquele mundo de imagens
algum passante deixa cair uma moeda de vinte e cinco centavos
um celular toca, é a mulher, hoje ela vai chegar mais tarde do trabalho

escorrega pelas fachadas dos prédios
um líquido escuro
e os bueiros bebem-no como cerveja importada
deixando bigodes de espuma
no vão entre ruas

a chuva aperta e começa a machucar um pouco o couro cabeludo
arranhando a paisagem como se limpasse o asfalto da pele
um táxi freia em cima da linha de pedestres
poderia ter atropelado alguém
poderia ter sido eu
mas não, hoje é o meu dia, minha noite
disse a imagem na poça no chão.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

camera obscura e poesia


assim como a camera obscura, mecanismo interessante de tão banal,
a poesia trata não de imitar a natureza como ela é, e sim,
de invertê-la.

esse pensamento pode parecer simples, e é!
por isso a gente pode ficar pensando bastante sobre ele.
(estou plagiando meu mestre José Carlos Monteiro, mas tudo bem)

então, quando for escrever seu poema, lembre-se de inverter as imagens.

enxergar tanto uma coisa até sê-la.
(já falou o Manoel de Barros)

olhar tanto para uma coisa até não ser.
(já falou o Pessoa)

o processo é bem simples. é preciso ser objetivo. ter uma objetiva (você) e uma camera
obscura (o lugar onde o poema aparecerá). o que vai aparecer é a natureza invertida.
(ou seja, poema)

invertida: no sentido de voltar para dentro. meditação.

domingo, 1 de maio de 2011

a dama e o vagabundo

ela é a dama
e eu o vagabundo
ela, caravana
dentro do meu mundo

ela só fascina
e eu sou um problema
eu só tenho a rima
pra fazer poema

ela tem cabelos
cacheados
deslizando pela face
pequenos tubos
onde ensaio
a experiência de amar

ela pensa
que a vida é ao acaso
como um jogo de dados
que alguém vai jogar

costuma ler sobre tudo
e se entrega às palavras
como quem vai no mar

esconde um segredo profundo
mas tão lá no fundo
que nem sabe onde está

gosta das coisas mais simples
que um vagabundo
pode complicar

viaja com os olhos no escuro
olhando para dentro
do globo ocular

percorre com as mãos o futuro
num gesto suave
fazendo ninar

se olha no espelho e não enxerga
a beleza do traços
de filme noir

precisa dizer todo o dia
para alguém da família
o lugar onde está

é a pequena do ninho
e sem um carinho
não pode ficar

dorme abraçada no frio
e acorda no cio
querendo acasalar

como uma gata de raça
se cobre e se enlaça
e só falta miar

merece todas as estrelas
e todos os poemas
que lua inspirar

mas essa dama foi logo
gostar de um vagabundo
seja o que for!

pois essa dama escreve
em linhas bem tortas
uma estória de amor

terça-feira, 26 de abril de 2011

carona

um silêncio dança no meu quarto
e um poema sem nexo desce pelas paredes
atinge um ponto crucial
debaixo do travesseiro
e investiga as camadas vitais por dentro da nuca
lugares nunca dantes notados
formas-pensamento em rodopio
um cavalo de gelo

chove lá fora
dentro do avesso
e um poema sem pressa
pede passagem
empurra as memórias como lâminas
de um barbeador aleatório
cortando fios do passado

e eu esqueço
de onde irei para onde fui e quando sou
um jardim de ouro
outro tempo

dá até para sentir a batida
de limão
fazendo efeitos
sonoros
na minha retina
(ela é feita das viagens por onde não visitei)

pode pedir carona

terça-feira, 12 de abril de 2011

pontos importantes que, antes de mais nada, é preciso falar aqui já que estamos tratando de poesia contemporânea

- a casinha. onde tem o escorrega. é de madeira. em cima ficava a menina me esperando.

- o pátio era grande. jogávamos bola. se caía no mato, todo mundo tinha medo. lá tinha cobra, parece.

- a tia de artes deixava a gente montar nas costas dela. como cavalo.

- eu furei o dedo de uma tia com caneta bic. mas a culpa não foi minha. me empurraram. (foi o barreto que me empurrou, também sem querer)

- eu pegava sol. era até bem moreno.

- nunca ganhei uma medalha de ouro no judô. quando ia ganhar uma luta, o juiz falava algum verbo em japonês que significava imobilizado mas eu soltava o adversário achando que era pra parar. não era.

- as areias do leblon eram melhores quando ficavam com aquelas pedras de areia. de dentro delas saiam formigas. tipo besouros. pequenos.

- eu achava que garotos eram garotos, não importava se eram de rua.

- festa junina era legal pelo fato de ter paçoca.

- a altaíza catando piolho da gente. ela usava vinagre. ficava um cheiro forte de vinagre.

- a sala dos bebês não podia entrar. mas a gente queria. era lá que tinha os brinquedos.

- drible da vaca na parede irrita as pessoas.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

longe, longe, longe

longe, longe, longe
vem de longe
vento
franja leve
sobe a testa
acha um céu
perfeito, perdido, prédio
por onde longe anda a nuca

nunca, nunca, nunca
antes tardes do que manhas
antes ruas da cidade
agora apenas é passagem
nunca tantas ruas tontas
riam sorrisos pela estrada
passagem secreta

eu te vi você me viu
bem-te-vi você partiu
a rosa
a prosa
a monotonia
em poema
em flora
em poesia
eu te vi partir a palavra
em pau, em lavra
achando ouro nas gerais

sonhei com você outro dia
longe, longe, ao meu lado
quando você de você corria
de sua sombra corria
e toda vez que o sol se apagava
eu procurava um lugar longe
para te observar
perto

o sonho era real
e você imaginou
um pedaço de mundo
nas suas mãos
era só a linha do seu destino
dizendo um segredo bem conhecido
era só a distância
um abraço
um beijo
partido

eu precisava de um abraço
e você me dava um espaço
eu precisava de um sorriso
e você me dava um pedaço
era a mesma dança
flutuando sobre os passos

longe, perto, não sei mais
pulsava a música dos fracos
corações leves
de tanto pesado

a gente corria para não chegar
fugia para aqui mesmo
queria conquistar o mundo
para libertar os profetas e os miseráveis
entregar a coroa aos mendigos

eu queria libertar o seu corpo
em praça pública
oferecer você como oferenda
como uma deusa errada

eu queria dizer pra todo mundo
o quanto por dentro
eu perdido me acho, me achava
me acharei com certeza
um incerto, indescoberto, perfeito
prédio
poeta

que cantando tudo aquilo que nunca poderia ser
se redescobre mais cego e mais fraco
nessa fortaleza de areia
chamada : eu.

pode ser um transe
pode ser um segredo dos antigos
eu quero contar pra todo mundo

e ver o que acontece

louco, louco, louco
na cidade virada ao contrário
com os pés nas paredes
e o cérebro esmagado
deixar o coração tomar conta de tudo
tomar conta do mundo
e os ratos na sala de estar
com um alicate
ou um mordomo
coronel mostarda
ou vladvostok

essa tormenta que me leva pra esse terreno
tão longe, longe, longe
está aqui
na ponta dos meus dedos
gemendo de prazer


terça-feira, 5 de abril de 2011

para um amigo

calma, amigo,
que isso é assim
a dor existe
"mas por que"?
você pergunta

calma,
antes de mais nada
de onde veio essa vontade
de que tudo é seu?

calma,
já reparou
que a dor
vem de querer
de não querer
achando que isso
define você?

definir. dar um fim. limitar.
calma, amigo,
se respirar fundo,
concentrado,
vai perceber,
que esse estado
tranquilo
que é você (?)
não tem limite.

vai perceber,
que as palavras,
as cores,
as lembranças,
os toques,
os cheiros,
ainda não eram
você.

e nesse respirar,
profundo,
calmo,
que:
não é querer
é querer
é querer e não é querer
não é não querer e nem querer

é simplesmente

ser

calma, amigo
em cada silêncio
pode brotar uma paz
do tamanho exato
de uma dor
depende se você grita o silêncio
ou se pega ele nas mãos

calma, amigo
nesse poema que você escreve
desde pequeno
desde sempre
quebrar uma rima
pode ser outra rima

o que importa é continuar na poesia



segunda-feira, 28 de março de 2011

as funções do silêncio

eu fugi de mim mesmo
compondo músicas e escrevendo poemas
que falavam de uma terra distante
e de pássaros que andavam pela grama
e de moças que voavam pelas nuvens
mas de mim mesmo
eu fugia

eu tinha medo de ser eu mesmo
compondo quadros
na parede do meu quarto
mas eu acho ainda bonito
observar aqueles mundos
pela janela do meu quarto
pela janela dos meus óculos
eu acho bonito aquele medo
de quando eu queria ser um vento
eu tinha medo

quebrar uma guitarra num show
andar de madrugada na europa
perder um dente numa briga
fumar um cigarro
eu tinha medo de ser um silêncio
enquanto tudo precisava ser
gritado

e se estivesse chovendo
eu chorava páginas dos meus óculos

e se estivesse nublado
eu esfriava o meu chá
ao lado da pessoa que eu não era

e se estivesse claro lá fora
eu jogava bola

e se estivesse frio
eu respirava fundo

eu tinha medo de ser eu mesmo
de ser um fraco
caminhando em cordas bambas
feito tripas entre prédios altos
no centro da cidade

eu tinha medo de fracassar
os sonhos do meu pai
os talentos da minha mãe
a esperança da minha vó
o segredo do meu avô

eu tinha um segredo
que só podia ser contado
através de poema
de música
de silêncio
e de guitarra

eu tive medo de ser eu
e queria ser o que você queria que eu fosse
fóssil
míssil
diesel
filho
filme

atravessar esse vazio


segunda-feira, 21 de março de 2011

consegui
finalmente consegui
pegar um raio de sol
com uma armadilha

esperei um tempão
mas consegui
inclusive vai rolar um
raio de sol assado
amanhã

quarta-feira, 16 de março de 2011

fotografia que estourou e só posso ver a mim mesmo

enquanto prédios se apaixonam por urubus
chove
e a menina-prédio sonha em andar por aí
conhecer as cidades do mundo.

justo agora que fechou as janelas
e foi dormir
encontrei um caderno rasgado no chão
aberto na última página
escrito com poeira do chão e folhas picotadas
"nunca mais vou ser sempre"

é engraçado
as paredes escutam cada coisa
quem conta são os ratos, os mendigos, lagartos
e tem outros também
que viajam

por entre os ferros retorcidos
como um miojo urbano
caminha um papagaio
que eu imaginei
ele só repete uma melodia
que eu não ouvi ainda

talvez um dia eu ouça as melodias que você me cantar
ao pé do ouvido
com o pé na cabeça
plantando bananeira
e o apocalipse derramando dinheiro

a sandália dela
arrasta no chão
mas não faz barulho

o sorriso dela
voa
eu acho legal
(e ela nem sorriu)

mas nem falei nada
porque tenho vergonha

ontem mesmo eu estava vendo
pela janela do ônibus
um garoto
olhando o mundo como se fosse
um filme
ih, não, esse era eu
quem eu vi era o filme
usando uma fantasia de carnaval
debochando das minhas bochechas

estamos tão distantes como se fosse um abraço
posso até sentir esse aperto que o ar faz na costela
em volta de meu corpo
posso até perder o ar dos pulmões
de tanto nada
é bem pesado esse nada
que me separa do que não tenho dentro

se eu pudesse me implodir
como a menina-prédio pediu
criaria um big-bang às avessas
e vestiria meu corpo só como fantasia de carnaval
para debochar das bochechas do mundo

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

desperto

desperto novamente aqui na beira do abismo
tenho 22 anos de idade
mas o espírito é velho caduco
mas se esqueceu
que bom!

desperto novamente, estou no abismo
encarando o rosto descendente e vertical
de minha queda
o cabelo ainda é negro
forte
e não caiu

desperto novamente
a gravidade me abraça
com sorrisos newtonianos
mas eu continuo desperto
perto do abismo
longe de mim mesmo
alcançando as distâncias que vão dar no meu umbigo

desperto e novamente
percebo a quantidade de gás carbônico
ajeito o meu bigode
e vou dançar o twist na beirada da pedra
olhando a minha morte
bailando invisível em cima de algum vazio

desperto, novamente, desperto
consciente de que isso é apenas um sonho
doce de leite
é melhor do que creme
mas todos ainda são ilusão

desperto
longe de casa
longe da minha família
mas com o coração cheio de quedas
por mim e pelo mundo

lista

recuperar o meu relógico biológio.
recuperar o meu fogôlego
recuperar o meu ethos
recuperar o meu lego (aquela peça que não encaixava)

preciso fazer uma lista das coisas que preciso listar
1- escrever essa linha
2- pelo som dessa linha que eu escrevo agora, escrever automaticamente a outra linha
3- estabelecer alguma rima, nem que seja de idéias
4- às vezes voltar e ler em voz mental para poder cantar as próximas linhas

pagar o que devo
preciso pagar o que devo
devo pagar o que preciso
tirar todos os documentos
elaborar as aulas
inscrições e certidões

preciso meditar, ou seja, preciso não precisar de nada, por alguns minutos ou horas
estar com saúde
praticar esporte
preciso praticar poesia
todo dia
cada dia mais
se eu quiser me tornar um poeta será preciso praticar
nada, com afinco.

comprar chocolate

polisnização

depois de um tempo
o vento vindo
transforma o clima
com mãos invisíveis
tocando a pele
das folhas verdes
cheirando as moças
e os sinais de civilização

o vento passa
por entre as casas
apartamentos
e a mente presa
burocracias
enquanto cozinham
feijão e bife

por entre janelas
daquela cidade
que dentro da gente
cantava hinos
desesperados em juventude
permanece um coro
desabrigado

o vento fica
roçando as árvores
queimando raízes
passado e promessas
descobre um futuro
por entre formigas
cava um muro
ergue um buraco
no meio do caminho
sem pedras

depois de um tempo
o ritmo lento
da clorofila
do pensamento
do sol batendo
a seiva bruta
penetra as ruas
da minha cidade
só de saudade
e escreve cartas
que ninguém vai ler

e as letras fogem
dos meus cadernos
das minhas telas
computadores
são mantras cegos
que esbarram em prédios
sem perceber

e os poemas
por mais pequenos
podem crescer

sábado, 19 de fevereiro de 2011

era uma vez um homem que se apaixonou pela coerência

era uma vez um homem que se apaixonou pela coerência.
todo dia de manhã ele acordava, tomava o café, ia ao trabalho.
voltava do trabalho e ia dormir.
ele era coerente.

até para escrever ele era coerente.
começava sempre com "era uma vez"
e terminava com "e assim foram felizes para sempre".

até que um dia ele acordou.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

era uma vez um homem que se apaixonou

era uma vez um homem que se apaixonou por uma reportagem de jornal.
ou seria melhor uma reportagem que se apaixonou por um homem de jornal?
um jornal que se apaixonou por um ou.

às vezes a gente embaralha as coisas na vida.
a vida é um barato. é um baralho de tarot.

era uma vez um homem que se apaixonou.
ele se apaixonou por um pedaço de madeira que estava escondido atrás da escrivaninha.

atrás da escrivaninha tinha um pedaço de madeira, um clips, cabelo e uma aranha.
a chamada dona aranha.
a história da dona aranha é muito grande, então eu vou resumir.
fim.

era um homem que se apaixonou por uma vez.
e a madeira que ele escondia apareceu amanhã.
era um negócio muito comum isso de aparecer coisas amanhã.
antes acontecia isso de vez em nunca.

era uma vez um homem que nunca se apaixonou por uma vez amanhã.
ele tinha um amanhã com aranhas.
ele sonhou que em sua nuca nunca passariam passarinhos.

eu sei. eu te contei isso agora.

domingo, 2 de janeiro de 2011

trecho de uma conversa

- e você lembra de quando a gente ficou preso na sala de cima?
- lembro.
- lembra de quando eu te dei aquele drible da vaca e tu ficou puto e me deu um soco?
- não.
- quem bate nunca lembra, mas quem leva, lembra.
- lembra daquela menina que falava espanhol?
- não. de onde?
- da nossa sala. acho que era estrangeira.
- não. e o muleque da foto, cadê?
- daquela foto? não lembro o nome dele.
- pois é, eu também.
- lembra daquela festa no terra encantada?
- era da sua irmã né?
- a gente nem se conhecia direito.
- eu tentei me enturmar com os isolados.
- eu era isolado.
- eu sei.
- acho que funcionou.
- é.
- mas como vai ai, tudo certo?
- tá indo.
- to pensando em mudar de carreira.
- é?
- é.
- mas e as paradas que você tá fazendo?
- sei lá. to precisando de algo diferente.
- po, to fazendo meditação.
- é mesmo?
- tá muito legal cara. você devia fazer.
- acho que eu gostaria.
- tem tudo a ver.
- você vai querer tomar mais uma?
- tá.
- beleza.
- ah, obrigado por ter vindo.
- que isso cara.
- não, sério mesmo.
- sempre que precisar, tu sabe.
- valeu.
- mais dois!
- há quanto tempo a gente se conhece?
- 10 anos?
- 10 anos.
- passa rápido.
- passa.