quinta-feira, 30 de julho de 2009

Pequenos tesouros

Há vinte anos eu não caminhava por aqui. O chão mudou, a parede. E mesmo mudados, consigo ver e pisar e tocar no que foram. É como se tudo estivesse miniaturizado. Na verdade, eu é que cresci. Os olhos das crianças já me dizem mais coisas sobre o mundo do que diziam quando, com eles, eu olhava o mundo. Não tem mais inocente.

Olha, era aqui nesse pedaço de chão que a gente costumava sentar. Eu gostava de dormir no chão. Dormir em qualquer lugar. A camisa da escola era branca, mas ficava cinza, encardida, suja de chão. O que estou fazendo aqui? Nada do que eu pensar vai trazer de volta aquele tempo e principalmente aquele espaço. Olha, era ali a parede onde a gente jogava bola. Ainda tem algumas marcas de bola. Eu as toco.

Eu sempre pensei que acharia tesouros escondidos. Eu deveria ter escondidos alguns. Talvez agora os achasse.

Aqui era o refeitório. Como estão pequenas as mesas e as cadeiras. Foi aqui que o Pedro declarou o seu amor pra Manu. Aqui eu imitava o Jim Carey. A mulher que servia a gente tinha um problema de fala. Ela não falava "frango", falava "fagango". Coitada. A gente zoava ela. Pedia pra ela repetir qual era a comida do dia, só pra ouvir ela falar "fagango".

E de repente, reconheço um menino. Ele vem caminhando na minha direção. Sou eu mesmo. Ele pede que eu o siga. Sigo. Entro num lugar meio escondido, no almoxarifado antigo, muita poeira, pedaços de madeira. Por entre os escombros, uma pequena porta. O menino, eu, entra e fecha a porta. Das frestas da porta vejo uma luz. Coloco a mão na maçaneta. Abro-a.

Acordo num quarto. O quarto é vazio, tem apenas um colchão, uma escrivaninha velha, de madeira, o quarto é escuro, as paredes são de madeira escura. Da porta do quarto, escuto uma música. Parece uma flauta, daquelas árabes. Um som estranho. A porta é de vidro fosco, e consigo ver a silhueta de um corredor. Das frestas da porta entra uma névoa, uma fumaça. Um cheiro estranho. Talvez um incenso. Oriental.

Abro a porta e lá está o corredor. A música aumenta. Eu nunca ouvi essa música na minha vida. Eu sempre ouvi essa música na minha vida. Sinto-me envolvido por forças desconhecidas. Não há necessariamente gravidade, nem as leis da física nesse local. Sinto como se estivesse num espaço artificial, criado pelas circunstâncias da minha mente, seguindo apenas as maleáveis convenções dos sonhos.

Acordo em meu quarto. Estou paralisado. Meu corpo está completamente paralisado. Tento gritar, a voz também não sai. Há vinte anos eu não caminhava.

Dormindo em qualquer pedaço de chão, estava ele. O menino sorriu e me mostrou um senhor, deitado no chão. Ao perceber em seus olhos a vida que sonhava, pedi para o senhor que me seguisse.

Fui até a porta. Abri.

Eu sempre procurei tesouros escondidos, nos olhos das pessoas.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Poesia sobre São João del Rey

perdi um papelzinho de caderno
onde estava uma poesia
sensacional
falando de São João Del Rey.

então vamos fazer o seguinte:
pense nessa poesia.

eu quero que você invente essa poesia
do jeito que você quiser

o importante é falar de São João Del Rey
ser bonita, sabe, uma poesia bem bonita

isso.

Numa Igreja em São João Del Rey

depois do casamento
quase é possível ver
as pessoas antigas
com suas roupas antiquadas
a formosura
as crianças brincando
um cheiro perfumado
de perfume barato
sabonete desses de farmácia
do interior: pharmácia

todos em seus melhores trajes
a vida acontecendo
em cada sorriso - o sino badala -
os sapatinhos da menina
brilham na noite

uma festa colorida
de pretos, brancos, mulatos,
brasileiros
o que quer que seja brasileiro

as coroas bem cuidadas
- deve ser o friozinho
a comida
a vida, enfim
o ritmo da vida
que pulsa mais lento

procisão
feliz

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Cenas

ele andou pela calçada da praia
abriu as calças
e fez xixi na areia
escrevendo a palavra
"amor"
na areia

do outro lado da cidade
a mulher dele
chorava no chuveiro
depois de ter tomado
vários remédios
e uma garrafa de vinho
barato

no apartamento do lado
não tinha ninguém
só o johnny
o cão da família
na varanda
olhando o passarinho que pousou

e depois voou

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A vida tem algumas coisas que eu acho interessantes. Na verdade, ela toda é.

a vida na prática
é impraticável

a luz na piscina
me lembra um filme

seus olhos
distantes
como se fossem os meus

um cão late ao fundo
passa um avião

estou sozinho
com você no coração

rimou,
mas não era pra ter
rimado

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Lavagem Nasal com Soro Fisiológico

a sinusite parece você
um catarro dentro da minha cara
uma força atrás dos olhos
impregnando os brancos com um tom de Ré diminuto

sinto seu corpo dentro da minha cara
nos passos redondos de uma doença
a dança de catarro entope o próprio torpor
transformando o travesseiro em crença

a sinusite parece você
por mais que eu insiste
a sinusite, parece você
um c
........a
..........t
.........a
............r
...........r
.............o

sábado, 4 de julho de 2009

Quero dormir nesse orvalho

.
quero dormir nesse orvalho
eu não valho nem uma gota caída
e a saída de mim mesmo dá trabalho

quero dormir nesse orvalho
e num ato falho reviver o que sou

quero dormir nesse chão
e de tão cansado acordar
tomo ar como alimento
respirando o vento que pousou

quero dormir nesse orvalho
e virar só sono
virar o orvalho
dormindo em mim

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Tem alguma coisa

acordei com a vontade de dormir o novo
entregando os lençóis ao mar, num fio de Sol

repousando as mãos por de sobre o mundo
o vento bateu asas nos meus olhos
e eu enxerguei o futuro

o futuro teve que tirar os quatro sisos
de uma só vez

o céu de açaí brotou
e a memória correu maratonas

1- longe, bem longe, quase consigo ver a palma da minha mão voando

5- existe um lugar, perto do nunca, que eu nunca fui

Gomes relata:

- Era noite. Na Urca nem um gemido. O mar batia nas pedras. O meu carro atravessou, rápido, como um tiro. Matei a cidade. Menos eu sobrou vivo.

A Imprensa informa:

- Escândalo revelado! foi encontrada uma poesia com 3 tiros.

3- "Parte de mim se vai no infinito"


acordei com novas páginas nos olhos.