sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Num piscar de óculos

encontrei a solução do sistema

isolei a variante do problema

agora a conta derá resultado natural

uma número irracional com calculadora científica



calcula a minha dor

científica



certifico-me de qual que o lar, qual que é o lar

que calculo a dor da calculadora



qualquer que fuja a minha a dor



é tua

Cadernos da adolescência: outubro de 2005

voltando, na rua, a dama negra caía no teto do mundo
envolvendo-me em sonhos absurdos, voltando do teu lar
os mesmos sonhos, calejados, fugindo-me de tanto sonhar
apagavam as sombras do meu próprio caminhar
tudo imensidão vazia e deslumbre

os olhos brilhavam por dentro, por fora eclipse lunar
com todo o místério e perfume de Lua no olhar
imaginava você me imaginando e nua no espelho a olhar
tuas curvas úmidas, esse teu involucro criado para amar
e ser amada intensamente
intenso delírio e perda do senso

Cadernos da adolescência: agosto de 2005

quando sigo teus passos
sempre me perco
quando ouço o que me diz
sempre me engano

faça-me liberdade
arranque de mim essa dúvida
teus cabelos não mentem
embora balancem contra o vento

você só me diz verdades camufladas
em pequenas doses de veneno
nada em você é simples
até teu entristecer gera
interpretações

você é uma comédia-trágica
eu sou um livro aberto em branco
a solidão é um eco chato
batendo na parede dos cômodos
incomoda

cômoda de madeira
perfumes, desodorante, papéis
coisas fúteis

agora, chuva de verão
chovendo forte, cheiro de chuva
de prédio molhado
um pouco de calor
um pouco de frio

se cada pingo tivesse vida
seria uma Humanidade
caindo sobre a cidade
enchendo as ruas de nova gente
tirando um pouco essa solidão

no quarto um ecossistema
de livros, cama, espelho,
armário
um ecossistema morto,
mas que ganha vida com o
meu toque
como mágica que as crianças
já conhecem de outras festas

essa chuva tem vários pontos positivos
une
enclausura
propicia uma gradativa falta de vergonha
quanto ao contato pessoal
nos deixa mais próximos com
vontade de abusar das sensações
com vontade de testar o toque
os sentidos em torpor

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Parque

naquele parque
onde estava aquela fonte
joguei uma moeda
olhando o horizonte
joguei minha própria queda
da altura que se esconde

naquele parque
perguntei o teu segredo
para a escultura de pedra
que me respondeu com medo:
água que rola não quebra,
cai uma gota no dedo

naquele parque
num filme de Apichatpong Weerasethakul
que não era um filme de Apichatpong Weerasethakul
porque o filme de Apichatpong Weerasethakul
não era o filme que eu tinha visto do Apichatpong Weerasethakul
porque o filme era o filme que eu tinha visto do Apichatpong Weerasethakul

Recital: Deserto Fim

Hoje senti algo bonito.

Pude assistir num recital de compositores da escola de música da UFRJ, uma peça de Rafael Sperling, meu camarada, com a minha poesia.

A surpresa foi a voz da soprano Lina Mendes. Impressionante essa voz. Que interpretação.
Fiquei impressionado com a força que a música ganhou.

Foi muito bonito ver aquilo que participei fazendo, aquela sementinha, aquelas imagens que tentava colocar no papel, pude ver as imagens ao vivo, na minha frente, no ar. Pude ouvir as imagens.

A música tem um que de árabe, de oriente médio, um clima, uma atmosfera. Tentei buscar uma história de deserto, de um amor, de cigana lendo o futuro, trabalhar essas imagens ao mesmo tempo áridas e misteriosas.

Provavelmente a música foi outra para mim. Ouvi diferente. Pra mim a música foi outra ali.
Tinha outro sentido, uma coisa de revelação. Revelar coisas que nem eu mesmo sabia. Acho que é isso que me move nesse sentido. Por isso, também, sou apaixonado pela poesia na música, por essa modalidade completamente diferente de poesia para música. Letra de música.

A sensação de ver aquilo, com muito mais riqueza, aquelas imagensonoras, foi quase um filme. Foi audiovisual também. Pra mim a música é cinema e cinema é música.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Perfeito Prefeito Pré-feito

uma súbita promessa
depressa na tensão do momento
quase um grão de areia ao vento
uma morte súbita anunciada
perto do silêncio
a cidade calada
não há o que falar
por que falar
não há

tudo foi pré-feito
pré-datado
datado
data, folha, ibope, globado, globalizado
tudo foi da forca, da força, tudo volta, perfeito
para o feito do velho oeste, velho velho oeste, velha zona,
zona, é leite oral, leite de palavras feridas, que ferem as vidas, leite oral desperdiçado
Rio despedaçado, partido em partido
partidos, Rios partidos, coligados, colegas-inimizados, contidos, contigo a amizade se enterniza
na velha lembrança do velho oeste, da velha mesma fala disseste: UPA!

mas tudo bem, foi feriado, foi a fé, foi crivelizado, foi caramelizado, foi Cesariano, Cesariana,
o parto dessa cidade, nascendo um bebê de Rosinhamary, um filho do demônio, como pregava o próprio heterônimo

promessas de um novo Rio, uma nova rinha de cães, ladros, e ficam calados os mesmos
e fortes, os mesmos esmos a estes termos, quase um minuto de silêncio pela falta de berço

mas foi tudo perfeito,
pré-feito de apoios, resolvidos os medos
perfeito feitiço que absolve os erros
num sacrifício Maia, onde o mais jovem prega o mais velho
e o sangue escorre no mangue, na Barra de metal que gela o pescoço cortado

e os três reis magos, os três patetas, os três profetas, de braços dados no quadro da TV
trazendo presentes, embrulhos bem embrulhados, bem caprichados,
um traz o prato, o outro o cargo, e o outro a Paes.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Canção para Altaíza

Ela que dava banho na gente
quando a gente era bem pequeno
ela que tirava piolho da gente
quanto para a vida a gente estava nascendo

ela que tinha um carinho maternal
cuidava da gente como se fosse mãe
ela que passava vinagre na nossa cabeça
pra matar os piolhos, nas manhãs

Altaíza, seu nome brilha num eco pelo pátio da memória
Altaíza, altiva e humilde luz que traz o som do coração
da batida de coração, em um coração de mãe, coração de criança, coração de mãe, coração, dança

ela que preparava o penico para o exame de fezes
ela que dava bronca na gente, às vezes
porque a gente às vezes era levado
fazia coisas mal-criadas

se você coubesse numa canção, Altaíza
ela seria do tamanho exato do coração
se você soubesse o quanto de fato, ameniza
lembrar das tuas mãos catando os piolhos, do coração

limpando o nosso coração dos piolhos do mundo

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Ouvindo Villa-Lobos

Ah! Já me disseram que sou louco,
já me jogaram pelos cantos, cantos,
não conseguiram firmar o nobre pacto, não conseguiram filmar o momento exato
que o barco cruzou o sacro/simulacro da cidade dos índios

Ah! Já me disseram que sou anarquista
por sonhar otimista a vitória da vida
por abrir os caminhos na floresta narcisa
eu que invadi os campos da História, pelos rios da memória
eu que me vesti de folclore, que preferi o acorde dissonante da morte
eu que cantei as glórias das notas fora, a cidade, as palmeiras, as corredeiras

Ah! Já me disseram que sou Glauber, que esqueci de olhar para a frente
eu que já não reconheço nenhum parente, pelas janelas da minha alma
passeando docemente, a morte escondida nos dentes, de Milton Nascimento nasce o sorridente e lento lamento indecente lindamente escondido nos dentes, nos dentes, nos dentes

Ah! Já me disseram que sou louco, já me puniram pelas formas, pelas normas, já me sonharam, já me roubaram tesouros, já me criaram como outro, já me sonharam envolto em lágrimas

peixes do rio Amazonas que não é o rio que passa na minha aldeia
no meu Rio de Janeiro, no meu rio de Gabeira, já me abriram a esteira da paisagem

e o que vejo é a passagem

para a VIDA.

Ouvindo Bach

A pura forma invade o pensamento
O pêndulo lento do Sol ao girar em torno da Terra
aquela forma bela
o solo, o Sol, aquarela feita pelos sonhos

pura fonte de formas
bruma fonte das horas
forma o tempo e o espaço
forma a fonte que nasce
que brota da própria forma
simbiose torta, perfeita, humana

A pura forma invade o pensamento
que desatento se transforma
em própria forma sólida, ocupa lugar no espaço dentro do pensamento
que se desvia de novo em constante movimento
aos céus, aos mar, ao novo milênio

Não há silêncio se não a forma
se sentir ao mesmo tempo que a nota chora
a nota que está atrás da nota, que isoladamente se esgota, entre as formas de desvio de rota
a frota marítima do concerto, o centro vazio de fora para dentro

triângulo cujo vértice esquece qual lado se veste de preto qual se veste de branco
o sonho azulado, a noite vermelha, o sangue laranja a cor perfeita

dentro da melodia a palavra que se exprime extingue o sentido, dentro da melodia a expressão do movimento que foge da sensível, dentro da palavra em fuga de sua vida perdida melodia, dentro do sentido que melodicamente se ex-vai pela rua sem saída que liga ao pensamento, nesse exato momento que pensamos escutar a melodia de dentro, se sublima, se sublima, se sublima

a pura rima

Ouvindo Mozart

Por entre as escadarias dos palácios
que existem dentro da gente, coração em formato de espiral
escuto as vozes de teus sonhos, trombetas retumbantes refazendo as arquiteturas
cada silêncio é preenchido pela vontade de conhecer Deus
de entender Deus, e a música

toma conta do meu sangue, alquimizado em paredes pintadas
pinturas sacras, sorrisos profanos, simbolismo barroco

o movimento dos corpos no salão, é uma dança, um ritual
de tempos remotos, antes da Humanidade, antes dos animais
mitos da civilização ocidental, que me contaram enquanto eu dormia

eu assisti o paraíso cair da Terra, na terra prometida
os olhos de fogo do último marujo ao avistar a América
os olhos de sono do mágico que encantou as caravelas
os olhos de ouro dos reis de outrora
a aurora que veio aos céus quando Zeus descobriu que estava só
entre as sombras do Olimpo

Numa missa bárbara,
os cantos se misturam com o barulho da vida lá fora
crianças vestidas de anjos, penduradas por cordas de madeira retorcida
voam pela Igreja de algum lugar de Viena

enquanto no Brasil algum índio se converte ao catolicismo

uma cruz, uma espada, um coração

Arrependa-se agora e estará salvo, a majestade o perdoará.

Mas por que? Por que te procuro nas paredes da civilização?
Tu que me procuras na parede da barbárie, tu que me seduz a escutar o cântico dos pássaros alados, dos aliados, dos prados, das pradarias da Musa

Tu que me acordas de noite, em plena madrugada, outros planetas, melodias do céu, anjos e demônios, pela noite adentro

Sonhos cósmicos

Por todos as melodias de Minas Gerais, cidades de ouro, lembranças barrocas
cabeças rolantes, república, vontade do novo, coroa real, prata, bandejas de prata

A voz dos anjos desceu aos céus e contou segredos de Deus, segredos da criação, para os homens que souberam ouvir, as promessas, futuros, a esperança da vida nova, a vitória sobre a morte

Sua majestade subiu as escadarias da memória e do futuro para conquistar as paredes do presente.

Corações em uma única nota, ressoando infinitamente dentro do mundo.

sábado, 18 de outubro de 2008

Obra

carregando nas mãos as palavras, como pedras
vai lentamente encaixando uma na outra, uma coluna vertebral,
a argamassa é o próprio pensamento
e ferramentas da idade da pedra

conduzindo peões como gado, ovelhas, de fato, algum animal
usando-os como rodas de uma bicicleta oficial, no Planalto Central
num plano, ao longe o horizonte de montanhas, talvez a serra
a concretude dos sonhos e o concreto feito de nomes
tudo jogado perto daquela parede, naquela construção gigantesca

no sorriso as marcas do futuro, passados mil anos, mil milênios atrás
nas mãos o sorriso denuncia a idade da pedra, e o sonho de água
o que sobra do cachorro quente da obra, não sobra
ficam pequenos pedacinhos de promessas

silêncios feitos de martelo, aço, ferro

arbo arbo arbo só se lê nos muros, nos sorum
a visão tem poeira e alegria de viver,
de ganhar um rádio portátil.

um rádio-despertador.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Quando eu morava na kombi do Carlos

Depois que eu saía da escola, eu voltava de kombi para a casa. Era para eu voltar para a casa, mas eu preferia viajar por todo o Rio de Janeiro, deixando todas as outras crianças em suas respectivas casas. Dormia na kombi do Carlos, para depois ir para o inglês. Era só de tarde, umas 17 da tarde, e eu saía 12 da escola. Ouvíamos roquenrol lá, alto pra caramba. Colocávamos o cd do Led Zepellin, Genesis ou Black Sabbath e pulávamos de cadeira em cadeira. Como num show de rock. Era bonito ver da janela o mar, quando a gente passava em São Conrado (tinha um garoto - chamado Conrado - que morava lá) ou na Lagoa. É legal quando o Sol bate na água, parece que são várias estrelas brilhando. Eu já até deixava minhas coisas na kombi. Tinha um par de tênis meu que já ficava lá atrás na kombi. O Carlos era maneiro. Disse que já tinha ido num show do Led Zepellin em Londres, em 70 e porrada. Dizia que ouvia Genesis com as namoradinhas. A kombi também foi o local onde primeiro se tocou o primeiro cd do Fênix. Fênix era formado por eu na guitarra e voz, André no teclado (fazendo o baixo) e Dan na batera. Quando gravamos esse primeiro cd, colocamos no som do Carlos, parado na frente da escola, na hora da saída. E colocamos bem alto. Juntou um pessoalzinho para ver. Ficava perto da barraca de cachorro quente. Aliás, era 1 real o cachorro quente. Era bom.

domingo, 12 de outubro de 2008

Dia das Crianças

Hoje é Dia das Crianças. Pensando bem, não foi à toa que comecei a escrever sobre causos da minha infância. De certa forma falar sobre a infância me faz pensar sobre o presente, sobre mim mesmo. Tentar entender, ou não, mas mostrar para mim mesmo como está a minha criança, é saudável. Como se eu carregasse um filho dentro de mim mesmo. E esse filho sou eu. Como se existissem duas pessoas: o pai, aquele que está na correria das coisas, na pressão do dia-a-dia, agindo quase sem pensar; e outra, a criança. Oficialmente, quem cuida da criança é o pai. Mas, de fato, é a criança que ensina lições. Quando o pai está ausente, a criança acaba crescendo, e o pai, acaba virando uma criança, solitária. Quando há cuidados, os dois tornam-se duas crianças, melhores amigos. Amigos de infância.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Rei do Paredão

A turma estava voltando de uma excursão. Aquele ônibus lotado de crianças, bagunça, André roubou pão na casa do João, não sabe cabeça de E.T, fofoca, galera de trás, nerds na frente falando com a professora. Tínhamos visitado um museu da H. STERN, uma famosa rede de jóias. Depois de descarregar aquela criançada, como uma boiada entrando no pátio da escola, tive a idéia de criar um jogo. Na verdade adaptar um jogo já existente, criando regras, numa espécie de campeonato, com características próprias. Chamou-se "Rei do Paredão". Para quem não conhece, o paredão é um jogo. É uma arte. Baseado nas antigas técnicas do squash, misturado com noções de tênis, e adaptado para a falta de recursos de um país subdesenvolvido, o Paredão só necessita de uma bola e uma parede. Quica-se a bola, batendo-a na mão, e ela bate na parede e volta a quicar. Quando esse ciclo falha, a pessoa que falhou sai do jogo. Pois então, adaptando esse tão cultuado esporte colegial, concebi um campeonato extenso, duro, difícil. Somente o maioral poderia alcançar o título de "Rei do Paredão". Era uma competição cativante. Logo no começo, quando todos estabeleciam seu lugar na fila (para bater a bola), a emoção já estava a mil: "Primeiro"! "Segundo"! "Último"! "Quarto"! Criou-se uma rivalidade tremenda entre os jogadores mais assíduos do esporte. E cada um tinha a sua habilidade especial, sua arma secreta. Diego tinha a sua "asa de águia", uma jogada dificílima de pegar, onde a bola varava o chão numa altura mínima e velocidade máxima. Eu tinha as famosas "deixadinhas", jogadas desconcertantes, que exigiam a extrema atenção e preparo físico do adversário, pois obrigava-o a literalmente dançar o twist para pegar. E tinha o André. André, por sinal, entrou para a história do Rei do Paredão. No Hall dos Grandes Esportistas do Rei do Paredão, André, definitivamente, está no topo da lista. Foi Rei do Paredão umas 14 vezes. No mínimo. O golpe mortal do André era a "porradona", uma bola que quase caía do outro lado do muro da escola. Penei muitas vezes para pegar. Muitas vezes caí antes. Jogava-se o sangue. Jogava-se com o coração. Partidas emocionantes transformavam a escola, por algumas horas, em estádios olímpicos. Nós, virávamos heróis do esporte, lutávamos contra o nossos próprios limites físicos e psicológicos para desfilar o melhor do paredão para os amigos e pras meninas, é claro. Elas também entravam no jogo. Mas na medida que o bicho ia pegando, inevitavelmente teriam que sair. Não agüentávam as "asas de águias", as "deixadinhas" e principalmente as "porradonas". Suor rolou por aqueles pátios cinzas e azuis. Como um antigo professor de eduação física me falou, antes do treino de basquete: "Nessas paredes, 'glória' se escreve com sangue e suor".

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Uma brincadeira chamada "Amigo"

1994. Senna ainda estava vivo. A seleção, não me lembro bem, era tetra, ou não. O que eu me lembro é do Leblon. O Leblon tinha um charme, uma coisa praiana, picolé Itália de côco, com pedacinhos da fruta perto do palito. Tinha o cara do Dragão Chinês, com sua voz inconfundível. Tinha o cara das balas com o "teleque-teque", aquele pedaço de madeira com um metal que faz barulho. Eu morava pertinho da praia. Era um japonês moreno, ensolarado, quase um havaiano. O legal era brincar na areia e no mar. Gostava de pisar naquelas areias que ficam duras, quebradiças. Era gostoso, aqueles quadradinhos, tipo gelos de areia, para esfarelar com os pés e com as mãos, com a surpresa de talvez encontrar uma daquelas joaninhas de areia, que eu chamava de fumiga. Geralmente eu ia com a minha mãe. Mas gostava de ficar meio solto. Corria um pouco. Me perdia às vezes. Tinha que achar o salva-vidas, já chorando, com o coração na boca. É porque a maré sempre leva, e a gente não percebe. A melhor brincadeira era o "Amigo". Antes de falar sobre essa brincadeira, me lembrei de outra, que foi uma espécie de protótipo da "Amigo". Era uma espécie de videocassetada, tinha um apresentador de tv, que era eu mesmo, falando sobre o mar. Ele ficava um pouco antes de onde as ondas quebram, falando sobre o mar naquele dia. Como se fosse uma mulher do tempo dos telejornais, só que era um homem, falando das ondas. Fingindo que não estava vendo, ia falando que o mar estava tranqüilo, até ser engolido por uma onda, e levar caixote. Geralmente eu engolia areia. Em vezes mais extremas, levava uns arranhões. Era engraçado. Como se tivessem filmando aquele momento e flagraram um repórter sendo pego pelas ondas. Na época era engraçado. A brincadeira "Amigo" era semelhante. Mas tinha uma diferença crucial: necessitava de outra criança. De preferência, um menino de rua, ou pobre, mal vestido. Um daqueles meninos que hoje eu chamaria de pivete. Pois é, eu geralmente brincava com eles. Eram os que aceitavam brincar. Consistia no seguinte: ou eu, ou o outro, íamos para frente do mar. Esperávamos a onda chegar. Quando estivesse bem próxima, com o perigo inevitável do caixote, gritávamos: "AMIGOOOOOOOOOOOOOOO!!!". O que gritou tomava o caixote e, enquanto estava tomando-o, o outro que observava de longe teria que salvá-lo, como num resgate desses que se vê no cinema. Não me lembro muito bem o que acontecia depois. Mas sinto que depois de umas três ou quatro vezes ficávamos cansados. Sem se despedir direito, e talvez nem sabendo o nome do outro, cada um ia pro seu canto. Brincar na praia. Será que nos encontraremos de novo, "Amigos" diversos? Cruzaremos por uma rua dessas, seremos colocados numa situação extrema? Necessitaremos da ajuda um do outro? Uma coisa é certa: cada um foi para o seu lado. A maré sempre leva, e a gente não percebe.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O dia em que fiquei preso na sala de cima

Era feira de ciências. Aquela agitação, crianças gritando pelos corredores, pátios lotados de experimentos bizzarros, pais em alvoroço. Um vulcão que jorrava tinta com pasta de dente. Maquetes que utilizavam gel de cabelo para simular o mar e lego para fazer pessoas. As mães, orgulhosas, passavam a mão na cabeças de seus prodígios, olha que legal, que bonito! Mas um daqueles meninos não estava com mãe nem pai presentes. Ele tinha um plano. Secreto. Afinal, estávamos em guerra, e a missão não poderia ser descoberta. O risco, morte. Juntou seus mais fiéis espiões: o gordinho, bom para distração dos guardas e inspetores, a bonitinha, boa para própria distração, o inteligente, para resolver problemas logísticos, e ele mesmo, o líder. Tudo teria que ser perfeito. Começaram a subir, um por um, a sala de cima. Um local tenebroso, abandonado, pelo menos naquele dia. De lá, os espiões articulariam o plano, a missão. Mas agora, o importante era conseguir chegar até a sala de cima. Precisariam passar por dois inspetores. Um em cada acesso. Não foi fácil. O gordinho funcionou bem, conseguindo abrir caminho para o inteligente e o líder. Do outro lado, com toda a sua malícia, a bonitinha malandramente conseguiu esperar o momento certo de subir. E lá estavam todos. Pera aí. Faltava o gordinho. Ah! Sempre ele, tinha que ser ele, ao mesmo tempo a peça chave e a peça que quebra a engrenagem secreta daquele grupo! Somente depois de alguns minutos, enquanto o restante do grupo, já na sala de cima, esperava ansioso, o gordinho, com a última de suas táticas, simulou o princípio de uma briga entre o cara novo da turma e o cara que bate em todo mundo. Conseguiu subir. Mal ele sabia que, no exato momento que subia aquelas escadas, foi visto de relance pela outra inspetora, do outro acesso. Chegando lá em cima, a glória. O gordinho estava vivo! Estava vivo! O clima de euforia tomou conta do ambiente. A sala de cima estava conquistada, pronta para o início da nova missão, tão secreta que nem o líder sabia. Corações a mil, ainda fazendo o reconhecimento tático da sala de cima, um estrondo violento vem da porta: PAHH!!! Que bonito ein! Vocês querem ficar ai, pois então fiquem!!! PAHH!!! Trancados. Estavam trancados. Foram pegos! A missão! A missão! O gordinho começa a ter um ataque de asma. A bonitinha é a única, consegue escapar antes que a inspetora fechasse a porta. Estavam lá, o gordinho, o inteligente, e o líder. Buscando desesperadamente um lugar para sair dali, o líder abriu a janela, não, não dava, era telhado, muito alto arriscado, a asma do gordinho aumentando. Enquanto isso o inteligente, sentado na cadeira do professor, com a mão no queixo, pensava. Não havia jeito de sair dali. Essa foi a sua conclusão final. Estavam presos, encurralados, para sempre. O grupo foi descoberto, a missão abortada. Era o fim. O fim de um grupo. O fim de um tempo. O fim da infância.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Linha de Montagem

um embrião
miniatura de gente
um coração
a criatura que sente

duas mãos
manipular objetos
dois pés
reconhecer os trajetos

dois olhos
capturar a imagem
calibrar a paisagem
corpo em movimento
qual a matéria do pensamento?

teus olhos
interpretar a passagem
calcular a imagem
corpo do pensamento
qual a sensação do tempo?

célula-mãe me ensinou a chorar
celular não me acordou de manhã
seu olhar tão disperso pós-moderno
seu lugar é o monitor do software

código-mãe me programou para andar
lógico sou me programei arquivar
pródigo filho me programou como pai
foge o destino de proclamar o backup

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Atrás dos olhos

atrás dos olhos
uma mão empurra a pálpebra
para que eu possa sonhar

um novo olhar, feito de visões

atrás das mãos
os olhos empurram os dedos
para que eu possa tocar

uma nova canção, feita de medos

atrás dos pés
um sorriso empurra as unhas
para que eu possa pular

um novo abismo, feito de som

meu coração byte por você
no compasso binário do zero e um
meu coração byte sem você
no espaço vazio, transpasso o destino
download do mundo

atrás da memória
um chip empurra o coração
para que eu possa lembrar

um novo compasso, defeito ilusão

sábado, 4 de outubro de 2008

Na verdade é "Síndromes e um Século"

o nome do filme

Síndromes de um Século

"joe" realmente me surpreendeu.

seu filme me trouxe uma idéia de liberdade para o cinema, para os filmes que farei, uma idéia de filmar mais sentimentos, emoções, e principalmente:

libertar a imaginação do espectador, a subjetividade do olhar do espectador.

Apishatpong aparece como um outro cinema possível.

Em "Síndromes de um Século" muitas coisas me chamaram a atenção.

A duração dos planos.

O som direto.

O enquadramento.

Os movimentos de câmera.

Os diálogos. Os não-diálogos, silêncios.

A narrativa frouxa, modal, na verdade o importante mesmo é a emoção.

De fato existe uma ligação com Antonioni, mas para além dela, há o espiritual, o mágico, o enigma.

Um filme mais de perguntas que respostas.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Eu e meu amigo Wittgeinstein

Ele disse "Os limites da minha realidade são os limites da minha linguagem"


Depois de não pensar eu digo:

"Os limites da minha linguagem são o começo da minha realidade"

Poema para Apixapong Uasetacul

sei que seu nome não se escreve assim
mas mesmo assim escreverei-o aqui
seu nome indica a sua obra
teu nome impronunciável pronuncia algo sobre a sua obra

cada plano de fundo se con-fundo com o plano de fuga
cada fuga da realidade se esconde na pura visualidade do plano
como se cada tecla de um piano se escondesse na tecla vizinha
como se cada linha se distorcesse e se encontrasse no infinito da própria reta
no mesmo plano

sindromes de um século
somos do mesmo planeta? planeta vida.
as vidas de um século, mozart, já tinha falado de mozart, está lá na vida
como disseste na entrevista
o olhar como novo estatuto da imaginação

o novo do teu cinema é realmente novo porque é realmente vivo

uma tailândia de mágica, um cinema de mágica
uma tão grande mágica do tempo e do espaço
uma tailândia de imensidão verde e de concreto plástico
um tailândia que é brasil e estadosunidos
porque não é a tailândia

teu cinema é um cinema de aprendiz de feiticeiro, aprendiz de monge, olhar a vida,
contemplação, ao mesmo tempo mensagem, enigma,

enigma, inimigo da preguiça do espectador cansado, teu cinema revigora nosso olhar,
Oh!

repecurtiste em mim como sua trilha sonora em seu filme, repercutindo na imagem para além da imagem,

pois além da imagem existe outra imagem, dentro da gente, e para além dela, só o vazio,

meditação

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Amor de amorde

Amo tua mordaça
boca presa por entre as paredes do destino
amo teu menino fruto do ventrelivre
boca livre, mpb, emepebê
amo tua carcaça
tua falsa graça nas tardes de dormindo, sonhando, sonhante
sonambúlico amor de amorde
amor de amar-te. deamo, d'ammart

cada pedaço do teu silêncio me silicona de silício
como um chip de batatas chips mordidas na boca-a-boca
amo tua batata da perna, tua pernóstica vontade de vida, desvia
transvia da tranviada, juventude no coração

amo tua presença de antíqua, tua saudade do que ainda não é
um acorde bonito, um precipício, Noel, a rosa

amo-te de noite, te deum de Mozart. muzzarela na pizza, pista de dança
amo a tua dança davida, david e golias, gigante amor, garante dor

cada amor de amorde