quinta-feira, 26 de maio de 2011

estranho

estranho essa coisa que a poesia tem.

você primeiro não vê.
então tenta relatar o que você não está vendo.

e nem consegue!

a poesia talvez seja o lugar
onde o êxito vem
em não alcançá-lo.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

ainda tenho coisas para dizer

percorro as paredes da memória como quem tateia cego uma parede de giletes
se cortar é apenas um detalhe, vira pintura imaginária dentro da minha caverna
sou o que fiz até agora e o que poderei fazer um dia
mas sou mesmo apenas o que sou agora
isso é pertubador

tudo o que fiz na vida
já não existe mais
a não ser que eu invente
a sua existência
lembrando
lembrar seria viver agora
uma invenção do que aconteceu?

assim como costumo lembrar
de tudo o que poderei fazer
das mil e uma faces que terei
de todas as minhas vidas futuras

se a vida bastasse
a poesia faria sentido
e não faria

delírio

convite da chuva

voltando do trabalho um homem descobre seu rosto numa poça da chuva no chão

a noite convida a entrada para o mundo das imagens
e o homem pisa em seu rosto como se negasse a chuva e o frio
algumas pipocas molhadas alimentam pombos
ou alguns pombos alimentam as poças?
seria o centro do rio um rio sem centro?
perdido em pensamentos sombrios, o homem esbarra num cão
não
era um homem
no chão
enrolado com um plástico preto
em posição fetal
emitindo um latido molhado pela chuva

um cigarro fuma um magro de olhos esbugalhados
e as cinzas do prédio se confudem com a fumaça que os carros
respiram

a noite convida a entrada daquele mundo de imagens
algum passante deixa cair uma moeda de vinte e cinco centavos
um celular toca, é a mulher, hoje ela vai chegar mais tarde do trabalho

escorrega pelas fachadas dos prédios
um líquido escuro
e os bueiros bebem-no como cerveja importada
deixando bigodes de espuma
no vão entre ruas

a chuva aperta e começa a machucar um pouco o couro cabeludo
arranhando a paisagem como se limpasse o asfalto da pele
um táxi freia em cima da linha de pedestres
poderia ter atropelado alguém
poderia ter sido eu
mas não, hoje é o meu dia, minha noite
disse a imagem na poça no chão.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

camera obscura e poesia


assim como a camera obscura, mecanismo interessante de tão banal,
a poesia trata não de imitar a natureza como ela é, e sim,
de invertê-la.

esse pensamento pode parecer simples, e é!
por isso a gente pode ficar pensando bastante sobre ele.
(estou plagiando meu mestre José Carlos Monteiro, mas tudo bem)

então, quando for escrever seu poema, lembre-se de inverter as imagens.

enxergar tanto uma coisa até sê-la.
(já falou o Manoel de Barros)

olhar tanto para uma coisa até não ser.
(já falou o Pessoa)

o processo é bem simples. é preciso ser objetivo. ter uma objetiva (você) e uma camera
obscura (o lugar onde o poema aparecerá). o que vai aparecer é a natureza invertida.
(ou seja, poema)

invertida: no sentido de voltar para dentro. meditação.

domingo, 1 de maio de 2011

a dama e o vagabundo

ela é a dama
e eu o vagabundo
ela, caravana
dentro do meu mundo

ela só fascina
e eu sou um problema
eu só tenho a rima
pra fazer poema

ela tem cabelos
cacheados
deslizando pela face
pequenos tubos
onde ensaio
a experiência de amar

ela pensa
que a vida é ao acaso
como um jogo de dados
que alguém vai jogar

costuma ler sobre tudo
e se entrega às palavras
como quem vai no mar

esconde um segredo profundo
mas tão lá no fundo
que nem sabe onde está

gosta das coisas mais simples
que um vagabundo
pode complicar

viaja com os olhos no escuro
olhando para dentro
do globo ocular

percorre com as mãos o futuro
num gesto suave
fazendo ninar

se olha no espelho e não enxerga
a beleza do traços
de filme noir

precisa dizer todo o dia
para alguém da família
o lugar onde está

é a pequena do ninho
e sem um carinho
não pode ficar

dorme abraçada no frio
e acorda no cio
querendo acasalar

como uma gata de raça
se cobre e se enlaça
e só falta miar

merece todas as estrelas
e todos os poemas
que lua inspirar

mas essa dama foi logo
gostar de um vagabundo
seja o que for!

pois essa dama escreve
em linhas bem tortas
uma estória de amor