segunda-feira, 23 de abril de 2012

nas pedras do arpoador

mulher sentada olhando o mar
o mar deitado olhando a mulher
a espuma dançando na pedra
a pedra sonhando com a mulher
a mulher se fazendo pedra
montanhas do rio de janeiro
lugar qualquer
o sol na linha do horizonte
não existe mas acreditamos
que ele esteve lá
porque o fogo laranja
se apaga
na espuma do mar
que contempla a pedra
a mulher e a linha do horizonte
que não existe
mas está lá
no limite das palavras
ou no infinito

mulher abraça as pernas
não vejo o rosto
o rosto é o mar
um fogo laranja
some
atrás do mar
quanto mais some esse fogo
mais claro o poema
se forma
em espumas
que não posso ver

a vida inteira eu procurei
um momento como esse
em que uma mulher se faz pedra
a pedra grita mar
e a espuma vira palavra

nunca achei
nem vou achar
e isso não me basta

e a poesia vive

domingo, 22 de abril de 2012

cafuné

deita na rede
e nem tem parede

deita a cabeça
no meu colo
e nem tem solo

deita a pele
na minha pele
cantarola michelle ma bele
com sotaque minero

deita os olhos
no espelho
batom vermelho
e nem escuta conselho
de que vai chover

deita de leve os cabelos
nas mãos que dedilham concertos belos
e vem, de leve, arrepio nos pêlos
como gatos no cio quando se tenta vê-los
pulando telhados de madrugada

deita de leve no sonho
fecha os olhos, mulher
deixa acordar a menina que quer
mais nada

só cafuné

pé-de-vento

eu sempre fui pereba
no futebol
porque meu pé
era de vento

no pique
principalmente bandeira
e na corrida
era bom

fiquei pensando hoje
como faz
para plantar
um pé de vento

soprar na terra?
abanar um vaso?
tem que ser num lugar
arejado
aberto

é um trabalho um pouco
complicado

mas nas palavras
é bem fácil até

porque elas tem oco por dentro

que nem as pessoas
e as árvores

queria escrever um poema
que nem parasse no papel
de tão ventado

mas não seria uma experiência
concretista
com umas doideras
do tipo gullar, campos e tal

seria uma coisa
que você nem ia ler

só sentir aquele vento na cara
que nem quando você coloca
a cabeça pra fora do carro

numa estrada em minas
ou em qualquer parte onde haja
verde

eu queria escrever um vento
mas isso é impossível

então a poesia ficaria melhor mesmo
se você fosse viajar agora
e colocasse a cabeça

pra fora

mise-en-abyme

mora na palavras
uma arara
que repete a paisagem
sonora

carrega dentro do bico
um caracol maluco
que regurgita poemas
vindos lá do tempo
do manoel

fica lá
comendo e recomendo
pedaços de frases
de mil anos atrás

esse caracol
leva dentro do casco
um pedacinho de vento
que vivia em estradas
no interior do brasil

na poeira desse vento
voam cinzas de avôs
cinzas de índios
e fumaças de cigarros
que talvez o fernando pessoa
fumou

nesse grão de poeira
resta um silêncio gritado
que um poeta imaginou
e escreveu
e criou asas
e voou
e que hoje mora
numa palavra

seu desenho

seu desenho
nem é no papel
seu desenho
é feito no mundo
com giz e lápis
suas sombras
estão andando
nas paredes

faz uma casa
com um olho
no telhado
faz uma nuvem
saindo da chaminé
nuvem cigana
nuvem bêbada
de guaraná
com gelo e laranja

seu desenho
brinca com as cores
o céu é verde
o mar é amarelo
as pessoas estão juntas
seu desenho
é feito com o corpo
dançando na vida

deixa para trás
rabiscos
letras desconhecidas
e procura um sorriso
nas paisagens

com tinta nas mãos
nos pés
nos seios
vai desenhando um voo
feito de sonhos
na cabeça dos monstros
dos pesadelos feitos de concreto
dos prédios
caem papéis brancos
picotados
cai um no seu decote
e se perde

seu desenho
não sei se é real
seu desenho
é imaginário
mas eu acredito
e me pinto
como eu quiser

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Nuvens bêbadas



Essa história quem me contou foi meu avô, no aniversário dele de 90 anos. Ele era um velhinho saudável da porra. Com mais saúde e força que eu. Depois que fez 90, chutou o balde legal. Ou melhor, bebeu baldes e baldes. Sei lá, cansou. Quis aproveitar e encher a cara. Em 2 anos bebeu mais do que bebem numa vida inteira. Câncer no fígado. Já tinha vivido muito também. E bebido.
Eu estava indo para o colégio, estudava no Pedro II, um dos colégios mais tradicionais do Rio. O Nelson Rodrigues que tem aquela frase dizendo que foi o maior desgosto não ter estudado lá. Imagino que aquele uniforme das meninas, bem colegial, aquela saia azul, realmente tenha enlouquecido o inconsciente do Nelson. Enfim, eu estava indo para a aula, que era de tarde, quando ele me puxou pela camisa do uniforme e falando daquele jeito dele, me levou para um pé-sujo ali perto em São Domingos. Pé-sujo mesmo, daqueles de ovo rosa. Tinha dois amigos portugueses no bar. Eram os próprios donos, um chamado criativamente de Joaquim, o outro, seu irmão João. Tinham fugido da Europa depois da segunda guerra.
Já bem bêbados, eu também, o vô começou a contar sobre sua infância e lembrou da história do Fagundes Varela, o poeta que ele mais gostava e que acreditava ser sua reencarnação. Contou que Fagundes Varela era o poeta mais bêbado do Brasil, e que foi por causa dele que começou a beber. Na verdade, por causa de uma menina: Maria Clara Lopes. Ele costumava falar o nome dividindo bem as sílabas, quase como quem saboreia cada uma delas. Ma-ri-a-Cla-ra-Lo-pes. Para tentar conquistá-la, simplesmente copiava trechos, as vezes poemas inteiros de Varela. Ficou bastante tempo na biblioteca, às vezes roubava livros do poeta, ou rasgava algumas páginas e colava nas cartas de amor para Maria.
O que meu vô sempre contava quando estava bêbado: os últimos dias da vida do poeta Fagundes Varela. Eu achava engraçada aquela obsessão. Na mesa do pé-sujo, depois que Joaquim trouxe um pequeno bolinho de chocolate, com uma mísera velinha azul, e meu vô assoprou com um sopro falhado, brilhos nos olhos, começou a contar de novo.
Fagundes andava por Niterói na época. Era já um famoso andarilho. Não como um mendigo. Trajava-se de forma até elegante, mas sem dúvida desleixada, decadente. Meu vô também tinha a mesma espécie de vaidade desleixada. A última vez em que Varela se apresentou socialmente foi num evento memorável, na casarão hoje chamado de Solar do Jambeiro. Bem pertinho daqui do bar. Era o aniversário do dono da propriedade, o diplomata dinamarquês Bertholdy. Em comum, Bertholdy e Fagundes, tinham além de conhecidos da sociedade fluminense, uma figura em especial: Rosa Fernandes. A prostituta de luxo dos grandes burgueses e antigos nobres. Curiosamente, ouvindo meu vô falar, percebi que aquilo era muito mais importante do que a aula de literatura que eu estava matando no colégio. Passamos muito rápido pelos poetas românticos. Pouco se fala sobre Fagundes Varela, o que mais me interessava, justamente por ser tão pouco falado na escola e tão amado pelo meu avô.
Varela teve um romance com Rosa, que na época era a preferida de Bertholdy. Vô, já falando alto, gostava de falar sobre como imaginava as noites de paixão entre o poeta e Rosa. Disse que lembrava da puta com quem perdeu a virgindade. Na festa no casarão de Bertholdy, no salão principal, todos dançavam sobre aquele piso bem bonito, parecendo uma espécie de jogo de gamão, e os convidados rodando numa coreografia que acentuava o caráter lúdico da coisa. Ao fundo, sentado, Bertholdy agia como um deus jogando seus dados e apostando alto.
Meu vô contava aquelas histórias, e os portugas ficavam olhando, quase que de boca aberta. Tirando a preferência por cervejas ruins, das mais baratas, admirava quase tudo no vô. Era um grande orador. Lembro que pedi uma ajuda pra ele quando me elegeram orador de turma. Acho que fizeram de sacanagem, sabiam que eu gostava muito de escrever, mas tinha certa timidez em falar em público. As aulas com ele duraram 2 fins de semana, e ele resumiu em um verbo: beber.
De súbito, vô subiu em cima da cadeira. Esbarrou numa das garrafas, quase caiu, se eu não o tivesse segurado. Foi tentando subir sem pedir ajuda, ele odiava essa história de terceira idade. Se apoiou nos meus ombros com o braço e se levantou. Os poucos que estavam no bar viraram para olhar. Então ele recitou um poema. Eu já tinha ouvido ele recitar uma vez, na verdade, quando eu estava com dúvidas sobre como conquistar a Lidiane, uma menina do colégio.
Depois que vô faleceu comecei a ter esses sonhos. A gente nunca lembra como começa um sonho. Quando vemos, já estamos no meio da história. Estava no Solar do Jambeiro, na época do Fagundes. Andava primeiro pelo jardim. Olhava para as árvores, flores e ia mentalmente identificando seus nomes. Azaléia. Camélia. Nomes de mulher. Ia para o salão principal. Eu sonhava em preto-e-branco. Por que? Estou dançando uma música que parece Ernesto Nazareth. Vejo no chão o piso decorado em vários desenhos geométricos criando uma espécie de labirinto. Lidiane está vestida como uma dama da sociedade. Parece mais velha. Há um senhor pendurado no lustre. Joga espumante nos casais que dançam. Bertholdy vem em minha direção. Seu rosto vira o do meu pai. Traz uma caixinha de madeira nas mãos. Vem um medo grande de abrir a caixinha. Acordo um pouco suado.
No enterro do vô, nem chorei. O sofrimento de meses com o câncer amortecia a gente.

Um dia conversando com o Marcelo Beauclair, professor de redação do colégio, fiquei surpreso e desacreditei quando ele apontou um erro grande de anacronismo, falando sobre o meu avô, o Fagundes, o Solar e tal. Disse que o Fagundes morreu em 1875, ao sair de uma festa, pelas bandas perto do jambeiro, sim, mas bem antes de Bertholdy residir no local. Me corrigiu também dizendo que Ernesto Nazareth também não poderia estar sendo apreciado naquelas festas da sociedade. Seria mais correto historiograficamente ouvir um Chopin. Aquilo tudo me pegou de surpresa. Fui ingênuo em acreditar no vô? Passei algum tempo remoendo isso. Ler os diários dele e fuxicar nas coisas que ele deixou ajudava para distrair. Eis que caído atrás da última gaveta da escrivaninha de madeira, encontro uma caixa. Parecia ser bem velha. Uma espécie de deja vu. Mas não lembrei do sonho nessa hora. Abri. Estava vazia. Na hora me veio um pensamento meio idiota, mas legal. Foda-se o que é verdade. Foda-se se o que o vô falou está errado, ou é invenção. Se não fosse a invenção não existiria a poesia.
Decidi levar comigo as cinzas do vô, naquela mesma caixinha de madeira. Não sabia o que fazer com aquilo, mas sabia. O jardim do Solar do Jambeiro parecia o mesmo de sempre. Por mais que a casa, hoje museu, parecesse um tanto quanto morta e mumificada; a terra, as plantas e flores, existiam e viviam ali. Perto de uma azaléia, olhei para os lados. Ainda estava sol. Os guardas estavam longe. Abrí um pequeno buraco, na terra ao lado da planta, coloquei cuidadosamente a caixa ali. Tentei pensar em alguma reza, pensamentos positivos, alguma coisa assim, mais mística. Olhei o relógio: 16h. Ah, foda-se, o vô gostava mesmo era de poesia. Lembrei de alguns versos do Varela:


“Minh'alma é como um deserto
por onde o romeiro incerto
procura uma sombra em vão;
É como a ilha maldita
que sobre as valgas palpita
queimada por um vulcão!”


Depois dessa silenciosa cerimônia, com os olhos ainda abertos, e um pouco lacrimosos, imaginei uma festa da época antiga da casa, e meu vô lá, dançando no salão, girando com as damas da sociedade, conversando com seu amigo Fagundes, Nazareth ao piano tocava Odeon, Lidiane de saia azul do Pedro II dançava um twist, no quarto ao lado meus amigos jogavam playstation, escravos serviam a todos vestidos de terno e carregando nos pés algemas de metal, as prostitutas dançavam can-can, eu tomava absinto com cachaça, e Bertholdy ao fundo, olhando tudo como um deus olha suas criaturas, e acima da casa, o Jambeiro crescia cada vez mais, olhando aquela coreografia de corpos com olhos de árvore, e acima do Jambeiro, as nuvens olhavam aquela cena imaginária, como poetas bêbados vivendo eternamente.