quinta-feira, 19 de abril de 2012

Nuvens bêbadas



Essa história quem me contou foi meu avô, no aniversário dele de 90 anos. Ele era um velhinho saudável da porra. Com mais saúde e força que eu. Depois que fez 90, chutou o balde legal. Ou melhor, bebeu baldes e baldes. Sei lá, cansou. Quis aproveitar e encher a cara. Em 2 anos bebeu mais do que bebem numa vida inteira. Câncer no fígado. Já tinha vivido muito também. E bebido.
Eu estava indo para o colégio, estudava no Pedro II, um dos colégios mais tradicionais do Rio. O Nelson Rodrigues que tem aquela frase dizendo que foi o maior desgosto não ter estudado lá. Imagino que aquele uniforme das meninas, bem colegial, aquela saia azul, realmente tenha enlouquecido o inconsciente do Nelson. Enfim, eu estava indo para a aula, que era de tarde, quando ele me puxou pela camisa do uniforme e falando daquele jeito dele, me levou para um pé-sujo ali perto em São Domingos. Pé-sujo mesmo, daqueles de ovo rosa. Tinha dois amigos portugueses no bar. Eram os próprios donos, um chamado criativamente de Joaquim, o outro, seu irmão João. Tinham fugido da Europa depois da segunda guerra.
Já bem bêbados, eu também, o vô começou a contar sobre sua infância e lembrou da história do Fagundes Varela, o poeta que ele mais gostava e que acreditava ser sua reencarnação. Contou que Fagundes Varela era o poeta mais bêbado do Brasil, e que foi por causa dele que começou a beber. Na verdade, por causa de uma menina: Maria Clara Lopes. Ele costumava falar o nome dividindo bem as sílabas, quase como quem saboreia cada uma delas. Ma-ri-a-Cla-ra-Lo-pes. Para tentar conquistá-la, simplesmente copiava trechos, as vezes poemas inteiros de Varela. Ficou bastante tempo na biblioteca, às vezes roubava livros do poeta, ou rasgava algumas páginas e colava nas cartas de amor para Maria.
O que meu vô sempre contava quando estava bêbado: os últimos dias da vida do poeta Fagundes Varela. Eu achava engraçada aquela obsessão. Na mesa do pé-sujo, depois que Joaquim trouxe um pequeno bolinho de chocolate, com uma mísera velinha azul, e meu vô assoprou com um sopro falhado, brilhos nos olhos, começou a contar de novo.
Fagundes andava por Niterói na época. Era já um famoso andarilho. Não como um mendigo. Trajava-se de forma até elegante, mas sem dúvida desleixada, decadente. Meu vô também tinha a mesma espécie de vaidade desleixada. A última vez em que Varela se apresentou socialmente foi num evento memorável, na casarão hoje chamado de Solar do Jambeiro. Bem pertinho daqui do bar. Era o aniversário do dono da propriedade, o diplomata dinamarquês Bertholdy. Em comum, Bertholdy e Fagundes, tinham além de conhecidos da sociedade fluminense, uma figura em especial: Rosa Fernandes. A prostituta de luxo dos grandes burgueses e antigos nobres. Curiosamente, ouvindo meu vô falar, percebi que aquilo era muito mais importante do que a aula de literatura que eu estava matando no colégio. Passamos muito rápido pelos poetas românticos. Pouco se fala sobre Fagundes Varela, o que mais me interessava, justamente por ser tão pouco falado na escola e tão amado pelo meu avô.
Varela teve um romance com Rosa, que na época era a preferida de Bertholdy. Vô, já falando alto, gostava de falar sobre como imaginava as noites de paixão entre o poeta e Rosa. Disse que lembrava da puta com quem perdeu a virgindade. Na festa no casarão de Bertholdy, no salão principal, todos dançavam sobre aquele piso bem bonito, parecendo uma espécie de jogo de gamão, e os convidados rodando numa coreografia que acentuava o caráter lúdico da coisa. Ao fundo, sentado, Bertholdy agia como um deus jogando seus dados e apostando alto.
Meu vô contava aquelas histórias, e os portugas ficavam olhando, quase que de boca aberta. Tirando a preferência por cervejas ruins, das mais baratas, admirava quase tudo no vô. Era um grande orador. Lembro que pedi uma ajuda pra ele quando me elegeram orador de turma. Acho que fizeram de sacanagem, sabiam que eu gostava muito de escrever, mas tinha certa timidez em falar em público. As aulas com ele duraram 2 fins de semana, e ele resumiu em um verbo: beber.
De súbito, vô subiu em cima da cadeira. Esbarrou numa das garrafas, quase caiu, se eu não o tivesse segurado. Foi tentando subir sem pedir ajuda, ele odiava essa história de terceira idade. Se apoiou nos meus ombros com o braço e se levantou. Os poucos que estavam no bar viraram para olhar. Então ele recitou um poema. Eu já tinha ouvido ele recitar uma vez, na verdade, quando eu estava com dúvidas sobre como conquistar a Lidiane, uma menina do colégio.
Depois que vô faleceu comecei a ter esses sonhos. A gente nunca lembra como começa um sonho. Quando vemos, já estamos no meio da história. Estava no Solar do Jambeiro, na época do Fagundes. Andava primeiro pelo jardim. Olhava para as árvores, flores e ia mentalmente identificando seus nomes. Azaléia. Camélia. Nomes de mulher. Ia para o salão principal. Eu sonhava em preto-e-branco. Por que? Estou dançando uma música que parece Ernesto Nazareth. Vejo no chão o piso decorado em vários desenhos geométricos criando uma espécie de labirinto. Lidiane está vestida como uma dama da sociedade. Parece mais velha. Há um senhor pendurado no lustre. Joga espumante nos casais que dançam. Bertholdy vem em minha direção. Seu rosto vira o do meu pai. Traz uma caixinha de madeira nas mãos. Vem um medo grande de abrir a caixinha. Acordo um pouco suado.
No enterro do vô, nem chorei. O sofrimento de meses com o câncer amortecia a gente.

Um dia conversando com o Marcelo Beauclair, professor de redação do colégio, fiquei surpreso e desacreditei quando ele apontou um erro grande de anacronismo, falando sobre o meu avô, o Fagundes, o Solar e tal. Disse que o Fagundes morreu em 1875, ao sair de uma festa, pelas bandas perto do jambeiro, sim, mas bem antes de Bertholdy residir no local. Me corrigiu também dizendo que Ernesto Nazareth também não poderia estar sendo apreciado naquelas festas da sociedade. Seria mais correto historiograficamente ouvir um Chopin. Aquilo tudo me pegou de surpresa. Fui ingênuo em acreditar no vô? Passei algum tempo remoendo isso. Ler os diários dele e fuxicar nas coisas que ele deixou ajudava para distrair. Eis que caído atrás da última gaveta da escrivaninha de madeira, encontro uma caixa. Parecia ser bem velha. Uma espécie de deja vu. Mas não lembrei do sonho nessa hora. Abri. Estava vazia. Na hora me veio um pensamento meio idiota, mas legal. Foda-se o que é verdade. Foda-se se o que o vô falou está errado, ou é invenção. Se não fosse a invenção não existiria a poesia.
Decidi levar comigo as cinzas do vô, naquela mesma caixinha de madeira. Não sabia o que fazer com aquilo, mas sabia. O jardim do Solar do Jambeiro parecia o mesmo de sempre. Por mais que a casa, hoje museu, parecesse um tanto quanto morta e mumificada; a terra, as plantas e flores, existiam e viviam ali. Perto de uma azaléia, olhei para os lados. Ainda estava sol. Os guardas estavam longe. Abrí um pequeno buraco, na terra ao lado da planta, coloquei cuidadosamente a caixa ali. Tentei pensar em alguma reza, pensamentos positivos, alguma coisa assim, mais mística. Olhei o relógio: 16h. Ah, foda-se, o vô gostava mesmo era de poesia. Lembrei de alguns versos do Varela:


“Minh'alma é como um deserto
por onde o romeiro incerto
procura uma sombra em vão;
É como a ilha maldita
que sobre as valgas palpita
queimada por um vulcão!”


Depois dessa silenciosa cerimônia, com os olhos ainda abertos, e um pouco lacrimosos, imaginei uma festa da época antiga da casa, e meu vô lá, dançando no salão, girando com as damas da sociedade, conversando com seu amigo Fagundes, Nazareth ao piano tocava Odeon, Lidiane de saia azul do Pedro II dançava um twist, no quarto ao lado meus amigos jogavam playstation, escravos serviam a todos vestidos de terno e carregando nos pés algemas de metal, as prostitutas dançavam can-can, eu tomava absinto com cachaça, e Bertholdy ao fundo, olhando tudo como um deus olha suas criaturas, e acima da casa, o Jambeiro crescia cada vez mais, olhando aquela coreografia de corpos com olhos de árvore, e acima do Jambeiro, as nuvens olhavam aquela cena imaginária, como poetas bêbados vivendo eternamente.

4 comentários:

  1. Uma vez uma pessoa me disse que mentir é bonzão, então, o que vale são histórias bonitas que ficam. E essa que eu acabei de ler é muito, muito bonita mesmo.

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    1. mentir é bonzão, melhor mesmo é dizer a verdade, de boca cheia, que nem quando eu te olho e fico calado...

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  2. Muito bonito ler tudo isso que vc e seu avô criaram! Muito mesmo!

    E foda-se o que disse seu professor de redação.

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