Essa
história quem me contou foi meu avô, no aniversário dele de 90
anos. Ele era um velhinho saudável da porra. Com mais saúde e força
que eu. Depois que fez 90, chutou o balde legal. Ou melhor, bebeu
baldes e baldes. Sei lá, cansou. Quis aproveitar e encher a cara. Em
2 anos bebeu mais do que bebem numa vida inteira. Câncer no fígado.
Já tinha vivido muito também. E bebido.
Eu estava
indo para o colégio, estudava no Pedro II, um dos colégios mais
tradicionais do Rio. O Nelson Rodrigues que tem aquela frase dizendo
que foi o maior desgosto não ter estudado lá. Imagino que aquele
uniforme das meninas, bem colegial, aquela saia azul, realmente tenha
enlouquecido o inconsciente do Nelson. Enfim, eu estava indo para a
aula, que era de tarde, quando ele me puxou pela camisa do uniforme e
falando daquele jeito dele, me levou para um pé-sujo ali perto em
São Domingos. Pé-sujo mesmo, daqueles de ovo rosa. Tinha dois
amigos portugueses no bar. Eram os próprios donos, um chamado
criativamente de Joaquim, o outro, seu irmão João. Tinham fugido da
Europa depois da segunda guerra.
Já bem
bêbados, eu também, o vô começou a contar sobre sua infância e
lembrou da história do Fagundes Varela, o poeta que ele mais gostava
e que acreditava ser sua reencarnação. Contou que Fagundes Varela
era o poeta mais bêbado do Brasil, e que foi por causa dele que
começou a beber. Na verdade, por causa de uma menina: Maria Clara
Lopes. Ele costumava falar o nome dividindo bem as sílabas, quase
como quem saboreia cada uma delas. Ma-ri-a-Cla-ra-Lo-pes. Para tentar
conquistá-la, simplesmente copiava trechos, as vezes poemas inteiros
de Varela. Ficou bastante tempo na biblioteca, às vezes roubava
livros do poeta, ou rasgava algumas páginas e colava nas cartas de
amor para Maria.
O que meu
vô sempre contava quando estava bêbado: os últimos dias da vida do
poeta Fagundes Varela. Eu achava engraçada aquela obsessão. Na mesa
do pé-sujo, depois que Joaquim trouxe um pequeno bolinho de
chocolate, com uma mísera velinha azul, e meu vô assoprou com um
sopro falhado, brilhos nos olhos, começou a contar de novo.
Fagundes
andava por Niterói na época. Era já um famoso andarilho. Não como
um mendigo. Trajava-se de forma até elegante, mas sem dúvida
desleixada, decadente. Meu vô também tinha a mesma espécie de
vaidade desleixada. A última vez em que Varela se apresentou
socialmente foi num evento memorável, na casarão hoje chamado de
Solar do Jambeiro. Bem pertinho daqui do bar. Era o aniversário do
dono da propriedade, o diplomata dinamarquês Bertholdy. Em comum,
Bertholdy e Fagundes, tinham além de conhecidos da sociedade
fluminense, uma figura em especial: Rosa Fernandes. A prostituta de
luxo dos grandes burgueses e antigos nobres. Curiosamente, ouvindo
meu vô falar, percebi que aquilo era muito mais importante do que a
aula de literatura que eu estava matando no colégio. Passamos muito
rápido pelos poetas românticos. Pouco se fala sobre Fagundes
Varela, o que mais me interessava, justamente por ser tão pouco
falado na escola e tão amado pelo meu avô.
Varela teve
um romance com Rosa, que na época era a preferida de Bertholdy. Vô,
já falando alto, gostava de falar sobre como imaginava as noites de
paixão entre o poeta e Rosa. Disse que lembrava da puta com quem
perdeu a virgindade. Na festa no casarão de Bertholdy, no salão
principal, todos dançavam sobre aquele piso bem bonito, parecendo
uma espécie de jogo de gamão, e os convidados rodando numa
coreografia que acentuava o caráter lúdico da coisa. Ao fundo,
sentado, Bertholdy agia como um deus jogando seus dados e apostando
alto.
Meu vô
contava aquelas histórias, e os portugas ficavam olhando, quase que
de boca aberta. Tirando a preferência por cervejas ruins, das mais
baratas, admirava quase tudo no vô. Era um grande orador. Lembro que
pedi uma ajuda pra ele quando me elegeram orador de turma. Acho que
fizeram de sacanagem, sabiam que eu gostava muito de escrever, mas
tinha certa timidez em falar em público. As aulas com ele duraram 2
fins de semana, e ele resumiu em um verbo: beber.
De súbito,
vô subiu em cima da cadeira. Esbarrou numa das garrafas, quase caiu,
se eu não o tivesse segurado. Foi tentando subir sem pedir ajuda,
ele odiava essa história de terceira idade. Se apoiou nos meus
ombros com o braço e se levantou. Os poucos que estavam no bar
viraram para olhar. Então ele recitou um poema. Eu já tinha ouvido
ele recitar uma vez, na verdade, quando eu estava com dúvidas sobre
como conquistar a Lidiane, uma menina do colégio.
Depois que
vô faleceu comecei a ter esses sonhos. A gente nunca lembra como
começa um sonho. Quando vemos, já estamos no meio da história.
Estava no Solar do Jambeiro, na época do Fagundes. Andava primeiro
pelo jardim. Olhava para as árvores, flores e ia mentalmente
identificando seus nomes. Azaléia. Camélia. Nomes de mulher. Ia
para o salão principal. Eu sonhava em preto-e-branco. Por que? Estou
dançando uma música que parece Ernesto Nazareth. Vejo no chão o
piso decorado em vários desenhos geométricos criando uma espécie
de labirinto. Lidiane está vestida como uma dama da sociedade.
Parece mais velha. Há um senhor pendurado no lustre. Joga espumante
nos casais que dançam. Bertholdy vem em minha direção. Seu rosto
vira o do meu pai. Traz uma caixinha de madeira nas mãos. Vem um
medo grande de abrir a caixinha. Acordo um pouco suado.
No enterro
do vô, nem chorei. O sofrimento de meses com o câncer amortecia a
gente.
Um dia
conversando com o Marcelo Beauclair, professor de redação do
colégio, fiquei surpreso e desacreditei quando ele apontou um erro
grande de anacronismo, falando sobre o meu avô, o Fagundes, o Solar
e tal. Disse que o Fagundes morreu em 1875, ao sair de uma festa,
pelas bandas perto do jambeiro, sim, mas bem antes de Bertholdy
residir no local. Me corrigiu também dizendo que Ernesto Nazareth
também não poderia estar sendo apreciado naquelas festas da
sociedade. Seria mais correto historiograficamente ouvir um Chopin.
Aquilo tudo me pegou de surpresa. Fui ingênuo em acreditar no vô?
Passei algum tempo remoendo isso. Ler os diários dele e fuxicar nas
coisas que ele deixou ajudava para distrair. Eis que caído atrás da
última gaveta da escrivaninha de madeira, encontro uma caixa.
Parecia ser bem velha. Uma espécie de deja vu. Mas não lembrei do
sonho nessa hora. Abri. Estava vazia. Na hora me veio um pensamento
meio idiota, mas legal. Foda-se o que é verdade. Foda-se se o que o
vô falou está errado, ou é invenção. Se não fosse a invenção
não existiria a poesia.
Decidi
levar comigo as cinzas do vô, naquela mesma caixinha de madeira. Não
sabia o que fazer com aquilo, mas sabia. O jardim do Solar do
Jambeiro parecia o mesmo de sempre. Por mais que a casa, hoje museu,
parecesse um tanto quanto morta e mumificada; a terra, as plantas e
flores, existiam e viviam ali. Perto de uma azaléia, olhei para os
lados. Ainda estava sol. Os guardas estavam longe. Abrí um pequeno
buraco, na terra ao lado da planta, coloquei cuidadosamente a caixa
ali. Tentei pensar em alguma reza, pensamentos positivos, alguma
coisa assim, mais mística. Olhei o relógio: 16h. Ah, foda-se, o vô
gostava mesmo era de poesia. Lembrei de alguns versos do Varela:
“Minh'alma
é como um deserto
por onde o
romeiro incerto
procura uma
sombra em vão;
É como a
ilha maldita
que sobre as
valgas palpita
queimada por
um vulcão!”
Depois
dessa silenciosa cerimônia, com os olhos ainda abertos, e um pouco
lacrimosos, imaginei uma festa da época antiga da casa, e meu vô
lá, dançando no salão, girando com as damas da sociedade,
conversando com seu amigo Fagundes, Nazareth ao piano tocava Odeon,
Lidiane de saia azul do Pedro II dançava um twist, no quarto ao lado
meus amigos jogavam playstation, escravos serviam a todos vestidos de
terno e carregando nos pés algemas de metal, as prostitutas dançavam
can-can, eu tomava absinto com cachaça, e Bertholdy ao fundo,
olhando tudo como um deus olha suas criaturas, e acima da casa, o
Jambeiro crescia cada vez mais, olhando aquela coreografia de corpos
com olhos de árvore, e acima do Jambeiro, as nuvens olhavam aquela
cena imaginária, como poetas bêbados vivendo eternamente.
Uma vez uma pessoa me disse que mentir é bonzão, então, o que vale são histórias bonitas que ficam. E essa que eu acabei de ler é muito, muito bonita mesmo.
ResponderExcluirmentir é bonzão, melhor mesmo é dizer a verdade, de boca cheia, que nem quando eu te olho e fico calado...
ExcluirMuito bonito ler tudo isso que vc e seu avô criaram! Muito mesmo!
ResponderExcluirE foda-se o que disse seu professor de redação.
ih alá, tu acreditou! rs
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