"contam em relatos da tradição tibetana
o modo como se dá a sucessão do Dalai-Lama:
uma comitiva de monges
carregando alguns objetos pessoais
do antigo sacerdote
juntamente com outros objetos semelhantes porém
sem terem pertencido ao Dalai,
óculos, túnica, lápis...
3 de cada.
os monges seguem uma carta-testamento
indicando através de uma charada
o local possível da reencarnação do mestre,
onde lá estará uma criança
um menino
que escolherá corretamente os seus antigos objetos
espalhados com os outros
de nenhum valor.
ele saberá, por instinto, por intuição.
ele reconhecerá."
- escritos achados numa ostra (1888)
foi assim, numa livraria do rio de janeiro
que fui-me saber o sábio que não era
ao achar que sabia de tudo
sendo eu apenas um garoto de onze anos
com nenhuma vivência mais emocionante
e por isso mesmo, com toda a experiência do mundo
imaginada.
foi uma imagem?
foi alguma palavra?
lembro apenas de pegar o livreto com as mãos
e reconhecer o objeto
como sendo meu
enquanto eu não me era.
"Fernando Pessoa - Poesias" - um pocket book.
na capa, uma caricatura, de um homem de óculos
com o rosto magro como o meu
com o rosto que seria meu daqui há 30 anos
e que ainda já deixou de será
pois fiz operação: não sou mais míope nos olhos
(sou n`alma e na poesia - enxergar só de perto)
reconheci as palavras como se fossem minhas
escritas naquele futuro que já passou.
porque diabos um moleque de onze anos se interessaria por um texto daquele?
foi o que? as frases? a falta de sentido?
algo sobre o mar? sobre o fingir da poesia?
a poesia em mim começou tentando fazer falar um fernando pessoa
e talvez tenha funcionado justamente por eu ainda não me ser
(como continuo não me sendo)
(não quer dizer que minha poesia funcione - a não ser para não-funcionar, que é sua função básica)
(não quer dizer também que a poesia é minha)
desconhecer-me passou a ser um hobbie que ocupava as aulas de matemática.
ainda hoje reconheço fórmulas de báscara pelo poema que estava escrevendo
enquanto o professor nos fazia decorá-las.
já é madrugada, meus olhos cansados não querem fechar o poema
o poema está nos meus olhos,
mas queria que estivesse nos ouvidos
ele segura com força minha pálpebra
e grita seu esforço de dizer alguma coisa não dizendo nada
gritando silêncios com uma força descomunal
já é quase outro dia
e ainda pergunto
por que dentre todos os livros, revistas, quadrinhos,
por que diabos fui pedir para minha mãe comprar
"Fernando Pessoa - Poesias"?
por que me fizeste conhecer esse tipo de incapacidade
crônica de expressar o tempo?
se sabias que não era Tu, sendo eu mesmo nem eu?
se sabias que eu seria Tu?
antes, na adolescência, era mais fácil simplesmente sentir
o abandono das coisas, pessoas, a solidão de perceber as mudanças
a solidão de perceber.
antes era mais fácil chorar páginas dos óculos.
antes eu dizia ser eu mesmo Álvaro de Campos, Caeiro, quando quisesse.
era só ser.
hoje é preciso não-ser.
o que muda um pouco a gravidade da situação.
é preciso inventar um abismo dentro de mim
no lugar do abismo que já não existe
e acreditar nele
e ter medo ao se jogar
e se jogar
e não cair
e não cair.
seriam essas vozes que me vem perto do ouvido
alguma sombra esquecida
algum segredo
que não cheguei a contar?
sinto sua presença agora
sinto um arrepio na costela
que percorre a coluna, a espinha e me deixa o couro cabeludo elétrico.
é você?
são vocês?
sou eu?
somos ninguém?
pego o metro lendo sobre você
e acabo lendo poemas meus e a minha estória de vida.
foi esse o teu segredo?
ser todos
sendo ninguém?
é essa a coisa da poesia?
fazer ser o que não é
não-sendo o que se é?
hoje, ontem, sei lá
seria apenas uma data
mas na tua astrologia
de extrema importância
é o início de um poema
que você fez questão de destruir - sua vida -
para ver o nada que na realidade era
como as coisas jogadas fora
que o Manoel separa com as palavras.
ontem admiti que você tinha mais importância para mim
do que o Manoel. e nem foi duro ou doloroso dizer isso.
eu sou mais importante para mim do que Manoel.
sendo eu você e você nada. sou-me nada, mas não admito isso.
não gosto dessa estória de niilismo, de botar para baixo, melancolia negativa.
acredito numa melancolia positiva.
o problema é esse.
sinto que já sou outro.
não sou mais o Pessoa que era. ainda bem.
seria mais fácil simplesmente desacreditar de tudo
e cometer o suicídio, alegando a incapacidade de viver e a falta de sentido das coisas.
seria pós-moderno, ou sei lá!
mas eu não sou pós-moderno - não entendo nem os românticos, não entendo nem os clássicos,
não entendo as pinturas rupestres!
se tudo o que a civilização construiu desmoronasse agora
eu gostaria de estar lá
chutando os escombros
cantando e dançando
descobrindo de novo
como fazer o fogo.
atribuindo mitos e fazendo sexo.
seria mais fácil colocar para baixo
mas eu sou outros, de outros tempos, de nenhum tempo.
tenho esperança na poesia.
não preciso do álcool, do absynto, da cocaína, do ópio...
não precisamos mais disso...
o Manoel de Barros é a maconha da minha geração.
ouviu? (falo comigo no espelho, comigo, Fernando Pessoa, me escutas?)
já não sinto o frio na barriga como morte.
sinto como vida.
sinto, logo existo.
amo, logo existo.
poesio, logo...
não há lógica na poesia
não há espaço cartesiano, capacidade de definir algo,
poesia não é tradução de sentimento
é impossível traduzir um sentimento em palavras
é invenção
poesio, invento um existir...
para que?
"há metafísica bastante em não pensar em nada"?
preciso tocar o céu com a mão suja de poemas.
só assim poderei enxergar o mundo limpo.
reconheço nessas palavras o ser que escrevi.
já não consigo ouvir o porvir o orvalho
já não consigo escrever
mais
nada
uma vez me disseram que a verdade fortalece poesia.
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