domingo, 25 de março de 2012

alguma coisa acontece no meu coração

num passado, não tão além, queimarei meus cadernos, como hendrix sacrificou sua guitarra.
aproveito para me queimar também.
se você quiser, pode entrar na fogueira santa.
o que importa é renascer das cinzas de uma civilização.
construir outro tempo.
sem espaço.
dentro do agora.

Queimem os cadernos


Do meu avô pouco sei além do que ficou nos seus diários e cadernos. Não sei se metade das histórias são fictícias. Nossa última conversa foi um pouco confusa, como todas as últimas conversas. O alzhaimer já avançava. Em um devaneio, ainda com um resto de pão com requeijão no canto da boca, me perguntou: “Nando, quem sou eu?”.

A notícia veio por telefone. Complicações respiratórias. Fui até Barbacena. Aquela cidade me trazia lembranças. Andei muito de rolimã nas ladeiras. Matei alguns passarinhos. Olhei por debaixo das saias das meninas.

Em seu inventário, o relevante:
- 1 carteira de identidade: nome: Juvenal Barros. data de nascimento: 23/07/1918
- 1 passaporte.
- 1 óculos de miopia.
- 47 cadernos, entre eles diários.
- 1 poupança no Bradesco totalizando R$8.000,00.
- 1 vitrola quebrada.
- 3 discos de vinil: 1 de Cartola, 1 de Paulinho da Viola e 1 do concerto de Brandenburgo n: 5, de Bach.
- 2 malas de viagem, contendo: revistas pornográficas velhas, bilhetes de trem, mapas, canivete suíço, algumas roupas.
- 1 espingarda calibre 22.
- 1 isqueiro prateado com as iniciais gravadas – “J.B.”

A enfermeira do asilo me contou algumas estórias. Disse que meu vô estava ficando assanhado. Tinha até bolinado outras enfermeiras. Num dos cadernos, encontro: “a vida de um homem se resume a encontrar a mulher certa.”. Ele era um romântico.
Só deixou um recado para a família: “queimem os cadernos”.

Quando era menor, envolveu-se numa briga da escola, por causa de uma garota, que lhe marcou permanentemente com uma cicatriz no lábio superior esquerdo, deixando-o mais saliente. Sobre esse causo, achei anotado: “...ele era mais forte do que eu, um brutamontes. Amália depois disso aceitou passear comigo na praça.”

Tenho passado esse mês lendo as anotações dos cadernos e diários. Convivi pouco com ele. Ler essas estórias é como talvez entrar na mente dele. Suas frases curtas tinham alguma poesia. Começava a me fascinar:

Ontem vi minha mãe. Era bonita! Não lembro o nome dela. Hoje eles fizeram bolo de fubá!”. Ou: “Sonhei que estava de novo beijando Rosa, em alguma estação de trem. Era Paris?”. Os escritos, mais do fim, alternam entre o naif do alzheimer, a confusão de idéias, e momentos pungentes de extrema lucidez:

Minha família não existe pra mim. Não me interesso. Minha vitrola quebrada tem mais valor. Isso me dói mais do que a doença.”. A gente nunca sabe exatamente porque escreve. Se meu avô fez questão de pedir para que queimassem os diários, parte dessa vontade minha de remexer nessas coisas pode ser um misto de homenagem e vingança. Decidi finalmente escrever um livro. Inventar o meu avô a partir do inventário. O livro abre numa estação de trem.

sábado, 17 de março de 2012

um poeta morreu

soube que um poeta morreu. toda vez que morre um poeta nasce uma prosa. uma rosa no apartamento, ou no asfalto. em breve serei eu a morrer também. e você que está lendo (ou não) o que escrevo (ou não). assim como a morte é a certeza da vida, a poesia é a incerteza. a morte de um poeta é uma espécie de buraco negro.  suspensas as leis do universo, emanam-se do escuro infinito as leis do verso. como que cega, a noite tateia as montanhas. a cidade parece dormir. ao fundo, bem no fundo da paisagem, consigo ouvir os sonhos da cidade que dorme. uma sinfonia de lembranças, riscando o céu negro com perfumes doces. mais ao fundo, uma criança tem um pesadelo. tem medo de morrer. acorda seu pai, assustada. minha filha, tudo não passou de um pesadelo, vai dormir. o cão também dorme. sonha com pulgas e ossos. as pulgas do cão sonham com circos na china. a china está já acordada, no horário do almoço. um moço na china escreve um poema. desenha um poema com ideogramas. idéias sem peso. não há gravidade na china. e aqui está tão noite que as palavras também dormem. as palavras sonham com poetas.

terça-feira, 13 de março de 2012

Notas encontradas no futuro

fragmentos datados de 13 de julho de 2037 - arquivo pessoal


I

Por acaso, assistindo a uma entrevista num video na internet de Patch Adams, o médico-palhaço mundialmente famoso após o filme, interpretado por Robin Williams, um intenso desejo de finalmente escrever um livro tomou conta de mim. A visão da arte como medicina para a sociedade caduca e doente, compartilhada por outro mestre que admiro, o cineasta e tarólogo Alejandro Jodorowsky, parecia criar forças, ou melhor, despertá-las de um sono há muito tempo dormido.

II

Por volta dos onze anos senti que era poeta.

III

Depois de ler A Invenção de Morel, e de ter visto os filmes do Chris Marker, notadamente o La Jettee, volta aquela sensação incrível de como seria intrigante escrever uma estória com um pano de fundo de ficção científica. Seria uma maneira eficaz de engajar o leitor, para, durante a trama, tecer observações e filosofar mais profundamente, sem nenhuma culpa de talvez ser chato.

Eu sei que teria que envolver alguma coisa em relação ao espaço-tempo. Algo que criasse um ambiente surreal.

Nessa salada doida, de alguma forma eu poderia tentar conjugar:

- memórias autobiográficas da infância.
- a minha relação com meu pai.
- reflexões poéticas.
- reflexões filosóficas.
- a questão dos sonhos lúcidos.
- achar uma maneira intrigante de desenvolver cenas de sexo.

IV

Realmente, o assunto mais intrigante que experimentei na prática: sonhos lúcidos. E a experiência com ópio no jazz da praça Tiradentes na quarta-feira de cinzas... Um misto desses dois. Um ponto de partida mais eficaz seria o de um livro de contos, linkados por essa temática, ou estilo. Ou personagem. Enfim, as conexões são feitas pelo leitor. Se forem bem escritas. Algo de Twilight Zone. Um cotidiano comum de onde irrompe o inexplicável. Escrever um livro imaturo mesmo. Para perder a virgindade da prosa.

Pode começar assim: Sempre conversava com amigos sobre sonhos, e um dia, seguindo a instrução de um deles, decidi começar um diário de sonhos.

V

Essa coisa de fragmentar por um lado é praticidade e por outro é preguiça.

VI

            Assim como o Keith Johnstone fala sobre Impro, vou seguir o conselho de dizer pra mim mesmo – vou escrever um livro medíocre. Partir de clichês. Assim a gente se solta mais e não precisa ser genial. Acho que vai ser bom para a produtividade da coisa


VII

Decidi. Vai ser um livro de contos. Contos que tratam de uma mistura de psicomagia, twilight zone, poesia e palhaço. Cada conto estimulando a imaginação. Decidi também organizar a minha agenda de tarefas pessoal. Sempre reservar momentos de leitura e escrita diária. Usar menos internet. O próximo passo é me relacionar mais e melhor com as pessoas, como fala o Patch Adams.

VIII

O mote, a unidade, pode ser justamente: a transformação do mundo através da poesia, do olhar poético. Como podemos olhar diferentemente as coisas e mudar nossas vidas. Não deixa de ser um livro como de auto-ajuda, mas com um viés literário e não tão declaradamente místicos como livros de Paulo Coelho e afins.

IX

Um dos contos pode ser baseado nas tardes dentro da kombi do marcos. As aventuras, as descobertas, os pensamentos daquela época.As apreciações roqueiras. As lutas corporais. Os causos do próprio marcos. O cd do Fênix. Mas teria graça isso tudo? Como escrever isso de modo diferente do que simplesmente contar? Aliás, qual o problema de simplesmente contar? Tudo não se baseia na velha arte de contar estórias? Como nossos ancestrais, desde o início da humanidade, em volta das fogueiras?

X

Finalmente entendo o que faltava para eu ter mais gosto e vontade de escrever prosa. Ler.

XI

Penso que um mote bom seria uma espécie de diário. Uma reportagem poética. No sentido de experimentar na prática coisas e relações interessantes para escrever não sobre, mais por sobre aquilo tudo experimentado. Como fala o Castello no Ribamar. Acho uma boa idéia. O que poderiam ser essas experiências? Algo do tipo do Patch Adams? Algo do tipo drogas? Algo do tipo sexo?

XII

Numerar os capítulos dá um prazer de avançar, uma sensação de que se está andando para frente. Mas queria mesmo era experimentar o livro-jogo como aqueles da adolescência. Não conhecia Cortazar, Borges. Então para mim o legal mesmo era o livro-jogo de RPG. Você podia escolher qual caminho tomar. Cada caminho correspondia a uma página. Pode ser o caso pensar em um livro desse tipo.