Do meu avô pouco sei além do que ficou nos seus diários e
cadernos. Não sei se metade das histórias são fictícias. Nossa última conversa
foi um pouco confusa, como todas as últimas conversas. O alzhaimer já avançava.
Em um devaneio, ainda com um resto de pão com requeijão no canto da boca, me
perguntou: “Nando, quem sou eu?”.
A notícia veio por telefone. Complicações respiratórias. Fui
até Barbacena. Aquela cidade me trazia lembranças. Andei muito de rolimã nas
ladeiras. Matei alguns passarinhos. Olhei por debaixo das saias das meninas.
Em seu inventário, o relevante:
- 1 carteira de identidade: nome: Juvenal Barros. data de
nascimento: 23/07/1918
- 1 passaporte.
- 1 óculos de miopia.
- 47 cadernos, entre eles diários.
- 1 poupança no Bradesco totalizando R$8.000,00.
- 1 vitrola quebrada.
- 3 discos de vinil: 1 de Cartola, 1 de Paulinho da Viola e
1 do concerto de Brandenburgo n: 5, de Bach.
- 2 malas de viagem, contendo: revistas pornográficas
velhas, bilhetes de trem, mapas, canivete suíço, algumas roupas.
- 1 espingarda calibre 22.
- 1 isqueiro prateado com as iniciais gravadas – “J.B.”
A enfermeira do asilo me contou algumas estórias. Disse que
meu vô estava ficando assanhado. Tinha até bolinado outras enfermeiras. Num dos
cadernos, encontro: “a vida de um homem
se resume a encontrar a mulher certa.”. Ele era um romântico.
Só deixou um recado para a família: “queimem os cadernos”.
Quando era menor, envolveu-se numa briga da escola, por
causa de uma garota, que lhe marcou permanentemente com uma cicatriz no lábio
superior esquerdo, deixando-o mais saliente. Sobre esse causo, achei anotado: “...ele era mais forte do que eu, um
brutamontes. Amália depois disso aceitou passear comigo na praça.”
Tenho passado esse mês lendo as anotações dos cadernos e
diários. Convivi pouco com ele. Ler essas estórias é como talvez entrar na
mente dele. Suas frases curtas tinham alguma poesia. Começava a me fascinar:
“Ontem vi minha mãe.
Era bonita! Não lembro o nome dela. Hoje eles fizeram bolo de fubá!”. Ou: “Sonhei que estava de novo beijando Rosa, em
alguma estação de trem. Era Paris?”. Os escritos, mais do fim, alternam
entre o naif do alzheimer, a confusão de idéias, e momentos pungentes de
extrema lucidez:
“Minha família não
existe pra mim. Não me interesso. Minha vitrola quebrada tem mais valor. Isso
me dói mais do que a doença.”. A gente nunca sabe exatamente porque
escreve. Se meu avô fez questão de pedir para que queimassem os diários, parte
dessa vontade minha de remexer nessas coisas pode ser um misto de homenagem e
vingança. Decidi finalmente escrever um livro. Inventar o meu avô a partir do
inventário. O livro abre numa estação de trem.
já, ansiosa para ler tudo
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