quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

uma noite qualquer

no meu quarto
à noite
ponho-me em silêncio

de pronto os grilos dormem alto
na paisagem desse silêncio
cães conversam sobre ossos
carros insistem em descobrir o fogo
e o calor de estar vivo
põe preguiça até nas estrelas
(cogitam parar de brilhar)

meu corpo quer dizer algo
ou melhor, quer dançar algo
mas faltam-lhe palavras
ou melhor, sobram-lhe sonhos
de modo que é fácil se perder

em cada nervo uma gaveta
nas dobras do joelho cultivo sonetos
no suvaco, descrevo poentes com o suor
e em cada vértebra os versos vergam vocábulos
que, tortos, desabrocham na superfície aberta
da mente

seria mais uma noite qualquer
não fosse essa gritaria toda



quinta-feira, 18 de setembro de 2014

barca da visão

hoje na barca fiquei em pé em frente ao portão vazado na proa
olhando o rio de janeiro se aproximando da visão
os prédios altos, o centro da cidade, as artérias da cidade
os prédio baixos, o centro histórico da cidade, as veias da cidade
enquanto no fone de ouvido a trilha sonora fazia daquilo tudo um cinema

hoje a baía de guanabara me atravessou
como uma barca atravessa um prédio
como uma cidade atravessa a visão
como a visão atravessa um cinema
como um cinema atravessa um corpo de gente

como um corpo de gente é menos espesso que um corpo de coisa

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

scenas urbanas

um mendigo vestindo uma camisa escrito pantanal inundando o centro da cidade ao meio-dia
do alto do arranha-céu somos todos formigas carregando pedaços de folhas mais pesadas que a alma
um silêncio atravessa o sinal vermelho antes que o cego de bengalas pudesse ver

segunda-feira, 5 de maio de 2014

no teto da casa

no teto da casa
comer guacamole
cerveja e pimenta
a vida é pequena
pra que tanto rio?

no teto da casa
falar besteira
contar as estrelas
o som das abelhas
dançando no frio

o casamento do cedro com a araucária
um abraço de nuvem no teto da casa
uma chaminé, um chamamé
o mundo girando no teto da casa...

no teto da casa
ver a namorada
deixar o vestido
de flor amarela
confundir o poente

no teto da casa
saber o tempo
de colher estrelas
o céu nas telhas
chamando o vento

o casamento do cedro com a araucária
um abraço de nuvem no teto da casa
uma chaminé, um chamamé
o mundo girando no teto da casa...

terça-feira, 29 de abril de 2014

deriva

andar à pé sem rumo
no meio da cidade
achar um atalho
um mijo de cachorro
que leve a lugar algum
ver, inventar, ser setas
ser sinais abertos verdes
abrir asfaltos com o dente
cavar o céu com os pés
andar à pé sem rumo
no meio dessa gente
enquanto o dia queima
veludos pelos ares
em ruas sem saída
achar por entre árvores
um ninho passarinho
achar por entre carros
e lixos retorcidos
um ser humano bicho
deitado em papelão
andar à pé sem rumo
sem sulco nos sapatos
no meio da saudade
buzina um coração
é tudo coisa falsa
me diz a consciência
são vidros e vitrines
comidas e bebidas
e gente no celular
andando pelas ruas
descubro uma pessoa
que veio do ceará
e canta titanic
com voz de violino
passeia com cachorros
de uma senhora morta
descubro um porteiro
que rega passarinhos
com água e açúcar
que manda nessa rua
sem saída para o mar
descubro um ponto nulo
por entre outros postes
onde se vê escrito
algum amor ou ódio
invento essa estória
e depois esqueço
andar à pé na rua
sem rumo e sem sapato
será que é verdade
boatos de assalto
ali naquela esquina
alguém perdeu sandália
é tudo da cidade
perdida em-si-mesmada
andar à pé sem rumo
esquecer que existe o tempo
supor que atrás do muro
alguma vida dorme
alguma vida acorda
e tudo é o que invento
no meio da cidade
descobrem-se rios
imaginários
e nos olhos dos pedestres
nos pés dos automóveis
alguma coisa vive
alguma coisa morre
lembrar que um dia a gente
andou por essas bandas
lembrar que a gente é só
que a gente é um mundo
lembrar que os pés doem
de tanta alegria
andando à pé sem rumo
à deriva

segunda-feira, 21 de abril de 2014

na minha beira

vive no canto da boca um canto sem boca
como paisagem perdida no canto do olhar
foi como a flor esquecida num canto de moça
ou poesia de areia nas beiras do mar

fotografias e rimas de um cego caduco
sonho do eunuco de um dia ser imperador
fruta madura que sonha um dia ser suco
vive na beira do ódio esquecido um amor

se procurar dentro da viola
a melodia na beira da corda
um som azul

se procurar no canto da boca
aquele beijo de beira de moça
um iguaçú

e se procurar por um espaço
pelas beiras entre seu abraço
um corpo nu

não vai encontrar nem mesmo o canto
onde se escondia por enquanto
o que eu fui

lembranças sem ter fim na minha beira
é de nascença em mim um mar pirata
tesouros que perdi por cordilheiras
tem mais presença em mim o que me falta

é de nascença em mim um mar pirata
tem mais presença em mim o que me falta

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Talvez

talvez seja essa noite
deitada em minha janela
talvez seja o vinho tinto
na minha camisa velha

talvez seja essa rua
por onde o silêncio ia
talvez seja só eu mesmo
querendo ver poesia

talvez seja esse tempo
de nuvem e chuva fina
talvez é o pensamento
a meteorologia

talvez seja essa insônia
que bebe meu corpo ao poucos
talvez seja o meu silêncio
gritando até ficar rouco

talvez seja o fim do mundo
ou só é saudade dela
talvez seja essa noite
deitada em minha janela

sábado, 8 de março de 2014

pensando em coisas que o Suassuna disse numa palestra

ainda preciso entender Canudos
para entender o Brasil

dar de presente uma pedra pequena, dessas comuns, de beira de rio

guardar pedras por mais de 50 anos, dessas comuns, pelo valor sentimental
pelo desvalor

guardar pedras em vez de guardar coisas úteis

dar presentes achados no chão, no mato, no rio
em vez de comprar camisetas na hering no amigo oculto do natal

ainda preciso dar as camisas que não uso

e dar mais tempo ao não-uso das coisas usáveis
de forma que o tempo não me use

púrpura

a casa completamente silenciosa
a cidade também
há todo um sentido no ar
projetos de vida
sonhos
a imaginação das pedras montanhas grilos
os sonhos dos mendigos

o cristo redentor vestido de luz roxa
no dia das mulheres vestem cristo de púrpura

tento me fazer mulher
para escutar as águas que escorrem
os fetos que gero

uma garrafa de vinho
minha vó, carol e queijos
põem a gente emocionado como um cristo de vestido púrpura
de braços abertos

dançando valsa com o silêncio do rio