terça-feira, 21 de setembro de 2010

"Vento Lírico" - crítica do livro da poeta Mari Coli

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À julgar pela capa do livro, o leitor já tem a ambiência poética necessária para desenvolver sua sensibilidade nessa aventura pelo rio de palavras de Mari Coli: uma menina, em preto-e-branco, carrega uma garrafa d`água de vidro, deixando o conteúdo cair, enquanto corre para dentro de uma casa em ruínas.

Poeta de sensibilidade ímpar, com um olhar fotográfico para as coisas, Coli começa o livro pelo título, destacando a importância da natureza. uma atitude notadamente romântica. em que os sentimentos ganham repercussão nos fenômenos naturais e vice-versa, algo que veremos em quase todos os poemas do livro.

Vento que às vezes nos lembra de frases...

A importância da poética mineira-universal do Clube da Esquina se faz presente, como uma suave neblina sobre esse rio palavral. Aliás, não seria de todo mal rebatizar o livro com esse outro elemento: a água:

"despertar pro mar
despertar pro cio

nem mais ócio nem receio
meu seio agora se ocupa de delírios

tão rápido o desejo enrijece
outro desejo irriga"

Uma das características principais da poesia de Coli é a maneira líquida na qual seus poemas são estruturados, bem como o próprio funcionamento orgânico da poesia se estabelece pela fluidez de rio, de córrego, até cascata, queda.

A sensação que fica é da ligação inquebrantável dos átomos de água, ao ler suas palavras, percebemos que a coesão entre elas é impossível de ser quebrada, cada palavra está no seu lugar e dá as mãos, numa corrente fluida, à sua anterior e sua próxima, formando um rio, por onde o leitor é jogado e navega.

"não importa quem eu escolha

sou sempre a última a chegar

é porque venho de longe

e tem sempre água no caminho

meu lugar é além

meu ofício é temporário

meu tempo está suspenso

sim, tenho ao meu alcance

nuvens, cores, ventos

tenho passado e tenho futuro

mas só tenho amor
e só tenho presente
se eu inventar"

É nessa metáfora, tornada concreta pela própria natureza de suspensão com ondas de tensão que a poesia de Mari Coli provoca no leitor, que nos aproximamos melhor da obra ainda pouco reconhecida no cenário literário, mas de grande valor poético.

Outro prisma é justamente a fotografia.
Depois de 2 anos em viagens pela América Latina, fotografando com sua máquina Laica, Coli enfrentou uma daquelas situações epifânicas que transformam a vida de maneira brusca: numa sessão de fotos com descendentes de nativos incas no Peru, teve seus filmes roubados por narcotraficantes. Numa típica trama mirabolante policial, os traficantes confundiram os rolos dos filmes com um outro carregamento de cocaína, também colocado em rolos de filmes para despistar as autoridades. Enfim, o que se sucedeu foi um insight crucial para a poeta.

- Como seria fotografar sem filme?

Começou a elaborar seus poemas enquadrando sentimentos como quem se posiciona diante do real para tirar uma foto sem filme. O que é revelado é exatamente nada. Ou seja, poema.

Em "Vento Lírico" temos a criação de um gênero literário híbrido, uma espécie de foto-poema.
Interessante notar a relação contraditória entre os dois fundamentos da poesia de Coli: ao mesmo tempo líquida e fotográfica.

A fotografia, como diz Benjamin, é uma ilusão de movimento através do princípio da persistência retiniana, ou seja, acreditamos estar vendo um movimento contínuo, mas o que temos são fragmentos congelados de imagens, sendo projetados tão rapidamente que percebemos como um movimento fluido.

A poesia do livro surpreende e surpreenderá ainda mais, pois assim como fotografar um rio, a cada segundo estaríamos fotografando outro rio, como tão belamente recomendou o filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso: não se pode entrar no mesmo rio duas vezes. (quanto mais fotografá-lo, como faz Mari Coli)

O que fica, ao percorrermos esse rio, é a imagem do tempo passando pelos lados, e a certeza de encontrar, num horizonte próximo, mas distante, como todo horizonte o é, o grande oceano de todas as poesias.

"Lembrança Impossível


“And I wondered if a memory is something you have or something you've lost”

O cheiro da casa
E das cortinas
É lembrança que eu conheço
Mas que só se rememora
Se o cheiro é novamente sentido

A casa foi demolida
As cortinas, talvez, dadas
E ornam a sala de outra casa

Quando sonho
Com sorte
Posso entrar novamente na casa
E me enrolar nas cortinas
Fazer delas um casulo
E me sufocar contra o tecido

Mas sentir o cheiro delas novamente
Isso é impossível"

6 comentários:

  1. Parece ser um bom livro, o importante é saber se tem uma foto enorme do Milton, pelado, berrando, no alto de um morro.

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  2. Me diverti com a parte da "sessão de fotos com descendentes de nativos incas no Peru". Até me imaginei fazendo isso.

    ass. Mar-Lima

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  3. adoro a fonte trebuchet MS
    as estátuas de afrodite e apolo ficaram realmente boas.
    beijos no coração
    ass. lica

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  4. É... o olfato não tem memória...

    nem o povo brasileiro.

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  5. Ah, eu gosto muito da poesia da Mari porque ela é sensorial e eu também sou de reter o mundo pelos sentidos. E isso que você disse também é verdade, ela é fluida mesmo.
    Olha que maravilha esse último eu não conhecia, é a mesma idéia daquele meu sobre a memória, sabe qual é? Só que mais maduro.

    Bela crítica, poeta, diria que Heráclito foi o ápice do texto.

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  6. Sim, Flávia, Heráclito foi o ápice do texto.
    Essa última que você viu foi a primeira, a que inaugurou o blog, escrita sob a pressão do nosso querido Omura. Conheço a sua sobre a memória, quando a li senti muito próxima da minha. Um beijo.

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