Paulo Leminski, 1944-1989
Queria não morrer de todo. Não o meu melhor. Que o melhor de mim ficasse, já que sobre o além sou todo dúvidas. Queria deixar aqui neste planeta não apenas um testemunho de minha passagem, pirâmide, obelisco, verbetes numa obscura enciclopédia, campos onde não cresce mais capim.
Queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina de pensar, a máquina que processa meu pensamento, meu pensar transformado em máquinas objetivas, fora de mim, sobrevivendo a mim.Durante muito tempo, cultivei esse sonho desesperado.Um dia, intuí. Essa máquina era possível.
Tinha que ser um livro.Tinha que ser um texto. Um texto que não fosse apenas, como os demais, um texto pensado. Eu precisava de um texto pensante. Um texto que tivesse memória, produzisse imagens, raciocinasse.
Sobretudo, um texto que sentisse como eu.
Ao partir eu deixaria esse texto como um astronauta solitário deixa um relógio na superfície de um planeta deserto.
Claro, eu poderia ter escolhido um ser humano para ser essa máquina que pensasse como eu penso. Bastava conseguir um aluno. Mas pessoas não são previsíveis. Um texto é.
A impressão do meu processo de pensamento não poderia estar na escolha das palavras nem no rol dos eventos narrados. Teria que estar inscrito no próprio movimento do texto, nos fluxos da sua dinâmica, traduzindo para o jogo de suas manhãs e marés.
Um texto assim não poderia ser fabricado nem forjado. Só podia ser desejado.
Ele mesmo escolheria, se quisesse, a hora de seu advento.
Tudo o que eu poderia fazer nessa direção era estar atento a todos os impulsos, mesmo os mais cegos, nunca sabendo se o texto está vindo ou não.
Era óbvio, um texto assim teria, no mínimo, que levar uma vida humana inteira.
Na melhor das hipóteses.
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